Ao longo da vigência do estatuto do estrangeiro, foram concedidas quatro anistias migratórias.

Atualizações da lei migratória brasileira: um novo paradigma das migrações?

Carla Ricci1

Jéssica Monteiro Clementino da Silva2

Resumo

Após quase quatro décadas de vigência do Estatuto do Estrangeiro, uma nova lei migratória foi sancionada no Brasil, apresentando um avanço no trato da questão da imigração, que tem sido negligenciada pelo Estado. Entretanto, mesmo diante dessa importante atualização, há de se considerar que a integração dos imigrantes ao país sempre foi – e ainda é – um processo desequilibrado, visto a histórica hierarquização de raça, gênero, cultura e classe social vivenciada no Brasil. Este artigo aborda, portanto, a nova lei de migração em sua interface com a conjuntura de marginalização desses imigrantes, a fim de identificar os avanços trazidos pela nova legislação, mas abordando insuficiências remanescentes.

Palavras-chave

Lei de Migração; Imigração; Políticas Públicas; Direitos Humanos.

Updates of the new Brazilian migratory law: a new paradigm of migration?

Abstract

After almost four decades of validity of Estatuto do Estrangeiro, a new migration law was sanctioned in Brazil, representing an advance to the immigration issue, which has been neglected by the State. However, even with this important update, it is necessary to consider that the integration of immigrants to the country has always been – and it still is – an unbalanced process, given the historical hierarchy of race, gender, culture and social class experienced by Brazil. This article discusses therefore the new migration law in its interface with the marginalized situation of these immigrants, in order to identify the advances brought by the new legislation, but addressing remaining shortcomings.

Keywords

Migration Law; Immigration; Public Policies; Human Rights.

Artigo recebido: dezembro de 2017

Artigo aceito: fevereiro de 2018

Introdução

Não é à toa que o tema das migrações internacionais tem ascendido com força e notoriedade nas pautas políticas nacionais e internacionais, bem como nos meios de comunicação nas últimas décadas. Muito além do grande e constante fluxo transnacional de pessoas, a dinamicidade adquirida pela troca de informações ao redor do globo não pôde mais camuflar a difícil realidade e trajetória dos imigrantes. Dessa forma, a questão da imigração tem conquistado, progressivamente, um espaço no debate de direitos humanos.

Há de se considerar, entretanto, que, diferentemente do refúgio, reconhecido e regulamentado internacionalmente a partir da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, a imigração ainda é escassa em instrumentos legais internacionais. A diretriz mais específica que rege essa matéria é a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, de 1990, que entrou em vigor em 2003, e atualmente conta com, apenas, 38 signatários, dentre os quais não está o Brasil (UNITED NATIONS, 1990).

Esse cenário reflete, em grande medida, o paradoxo dos Estados neoliberais – impulsionados pela globalização – que intervêm pela flexibilização das fronteiras nacionais, ao mesmo tempo em que criam barreiras físicas e jurídicas à entrada e permanência de estrangeiros em território nacional, principalmente aqueles oriundos dos países periféricos. Nessa lógica, a maleabilidade das fronteiras defendida por esses Estados é limitada a apenas bens, serviços e algumas pessoas, fazendo com que o imigrante seja, por vezes, compreendido dentro de uma perspectiva da segurança do Estado.

No Brasil, a fragilidade dos instrumentos internacionais corrobora com a trajetória da política imigratória nacional, que tem sido caracterizada por uma postura rígida e seletiva. No ano de 2017, no entanto, deu-se o desfecho de um importante Projeto de Lei, tramitado desde 2013, que versa sobre a condição do imigrante no Brasil e do emigrante brasileiro. A sanção dessa nova legislação (Lei 13.445/2017) supera a premissa da segurança atribuída à imigração, resguardada pelo Estatuto do Estrangeiro por quase quarenta anos, e traz novas regulamentações sobre a matéria que levam em consideração, principalmente, o paradigma dos direitos humanos.

Os avanços, se comparados aos instrumentos constitucionais até então prevalecentes, são notórios. Entretanto, é importante considerar que, além dos impeditivos legais, há no Brasil, uma trajetória de discriminação étnica e racial que permanece enraizada nas práticas cotidianas da sociedade e que afeta diretamente a integração e a formulação de políticas públicas para os imigrantes no país. Sendo assim, o presente artigo busca compreender se a nova lei de migração supre as necessidades de acolhida aos imigrantes no Brasil.

Para isso, o artigo traz, na primeira seção, uma análise concisa sobre a trajetória da política de imigração no Brasil, com ênfase no Estatuto do Estrangeiro e suas diretrizes, a fim de servir de base para a compreensão dos avanços da nova legislação. Posteriormente, o artigo esboça o processo de construção da Lei 13.445/2017, com a finalidade de compreender os desafios e articulações envolvidas no processo de tramitação e aprovação do Projeto de Lei e a resistência quanto à imigração para o Brasil. Por fim, a terceira seção apresenta uma reflexão sobre os (possíveis) avanços trazidos pela nova legislação e sobre as insuficiências que ainda persistem em matéria de imigração no Brasil.

Uma breve análise da política imigratória brasileira e o Estatuto do Estrangeiro

Embora o Brasil seja reconhecido por ser um país de imigração, tanto em função do seu processo de colonização e povoamento, quanto em decorrência do grande fluxo de imigrantes que buscaram abrigo no país, especialmente no século XX e, mais recentemente, nos anos 2000, a política nacional que rege a entrada de estrangeiros no país tem sido historicamente rígida. Desde o Brasil imperial, a imigração tem sido regulamentada em função de um projeto maior do Estado, que tem variado desde o povoamento e da formação da sociedade até as preocupações de segurança do governo militar.

Nos tempos do Império, a imigração, que foi estimulada pela Lei de Terras de 1850, objetivava cumprir com o projeto econômico e geográfico do Brasil, ou seja, ocupar as terras devolutas, a fim de assegurar o território nacional e diversificar a economia, através das pequenas agriculturas (SEYFERTH, 2002). A partir desse projeto, os imigrantes europeus ganharam primazia na entrada ao país. Segundo Seyferth (2002), nesse período já se estruturava uma hierarquia no processo imigratório, que desconsiderava não europeus e não brancos, mas que estabelecia critérios de preferência dentre as próprias nações europeias. Os imigrantes que ocupavam o topo dessa hierarquia eram os colonos alemães, tidos como trabalhadores e “bons agricultores”.

Quando a formação da sociedade brasileira foi associada à política imigratória, os europeus novamente ocuparam lugar prioritário – e exclusivo – no processo de imigração. Segundo Lesser (2001), a lógica das elites era a de que através da mestiçagem seria possível promover o branqueamento racial da população e, com ele, se construiria uma sociedade “civilizada”. Para isso, portanto, a imigração europeia deveria ser estimulada e espalhada pelo território nacional. Cabe ressaltar que, no decorrer de todo esse período, a população negra esteve fora do que se compreendia como “imigrante”, que era diretamente associado à figura do europeu, branco (SEYFERTH, 2002).

Com o encaminhamento da construção do Estado-nação e, nesse trilho, a proclamação da República, as preocupações com a unidade e coesão populacional resultaram no enrijecimento das políticas de imigração; visto que o isolamento de algumas comunidades (principalmente as alemãs) dificultava o processo de assimilação desses imigrantes. Nesse sentido, a prioridade de imigração já tinha se deslocado do alemão para os lusos e italianos (SEYFERTH, 2002), mas foi a partir do Estado Novo de Vargas que as políticas de nacionalização tornaram-se mais evasivas. Segundo Moraes (2016, p. 79-80), a partir desse período, “[...] o Brasil passou a formatar uma política migratória restritiva, e não mais de atração. Para tal política, era imperiosa, além da expulsão do estrangeiro indesejável, o maior controle do fluxo migratório, bem como a assimilação da massa de estrangeiros já residentes [...]”.

Cabe ressaltar que no governo Vargas permanecia, ainda, como perfil do estrangeiro indesejado “[...] aquele em desacordo com o projeto de nação voltado ao progresso (católica e de população branca)” (MORAES, 2016, p. 130). Diante do advento do regime militar, no contexto de Guerra Fria, foi que se incorporaram ao escopo dos imigrantes indesejáveis, os indivíduos de posição política de “esquerda”.

Embora a imigração para o Brasil tenha reduzido significativamente a partir da década de 1930, em decorrência das limitações e, inclusive, das suspensões de imigração instauradas por Vargas; o governo militar não deixou de adotar medidas restritivas à imigração, conservando as políticas de expulsão aos imigrantes, sobretudo àqueles que atentassem contra a segurança nacional3. A estrutura militarizada desse período refletiu na instituição do Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815, em 1980, que resguardou o tratamento da imigração a partir da óptica da segurança nacional, vinculado à autoridade policial. O artigo 2º do Estatuto dispõe que “[n]a aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional” (BRASIL, 1980, s.p.). Manteve-se, portanto, a política imigratória fundamentada num projeto nacional que engessa a concepção da nação brasileira dentro dos pressupostos de uma elite, dessa vez militar.

As diretrizes do Estatuto não restringiam apenas o processo de entrada dos estrangeiros no Brasil, mas toda a sua dinâmica e comportamento dentro do território. Além de resguardar a política de expulsão, a Lei 6.815/1980 previa uma série de limitações às atividades que podem ser exercidas no Brasil, tais como a proibição de alguns direitos de propriedade, de manifestações políticas e de direitos políticos, como votar e ser votado. Durante mais de três décadas, portanto, a plena integração e participação de estrangeiros como cidadãos e cidadãs estiveram obstruídas, sobretudo, pela vigência do Estatuto do Estrangeiro. Para Ventura e Illes (2010, s.p.),

[a]lém de arbitrária, a lei da ditadura é obsoleta. Incompatível com o rol de direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988 e com o direito internacional dos direitos humanos, o Estatuto do Estrangeiro também não responde às necessidades econômicas dos imigrantes e do país. Não há controvérsia sobre a urgência de revogá-lo.

Esses argumentos passaram a ser utilizados entre os atores sociais diretamente envolvidos e engajados com a causa, ecoando em debates cuja temática fosse o direito dos imigrantes, fazendo com que alcançassem as autoridades políticas.

Nesse sentido, a partir de uma trajetória de pressões sociais internas e internacionais, intensificada pelos recentes movimentos de imigração, o debate sobre a incompatibilidade da legislação brasileira com a realidade dos imigrantes no Brasil alcançou as vias de formação de uma agenda política. Após alguns anos de trabalho e articulação, foi aprovada, no ano de 2017, a Lei 13.445, que revoga o Estatuto do Estrangeiro e concede uma nova abordagem ao tema da imigração no Brasil.

O jogo de forças no processo de construção da Lei 13.445/2017

De autoria do então senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), atual ministro das Relações Exteriores, a Lei 13.445 fez um longo percurso até sua aprovação e, posterior, sanção. Durante esse processo, ela recebeu várias contribuições, sendo imprescindível, para tal feito, a participação da sociedade civil, incluindo os próprios imigrantes.

É sabido que com as mudanças na conjuntura política, econômica e social do país, a Lei 6.815/1980 necessitava de uma reformulação, pois se tornara ultrapassada e não compreendia a realidade na qual o Brasil está inserido. Nesse sentido, ocorreram incessantes discussões sobre a formulação de uma nova lei que não estivesse pautada nos paradigmas militares da época ditatorial. De acordo com Delfim (2017a), as mobilizações em torno da atualização da legislação migratória brasileira remontam ao começo da década de 1990. No entanto, foi apenas em 2013, com o PLS 288/2013 de Aloysio Nunes e com criação de uma comissão4, composta por especialistas, encarregada de elaborar uma proposta de Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, que essa mudança foi se tornando cada vez mais possível e concreta.

Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (2014), a elaboração desse Anteprojeto se deu a partir de estudos sobre a legislação migratória brasileira, de outros países e, também, de tratados internacionais. Além disso, houve a consulta de outros especialistas, de órgãos do governo e, sobretudo, da sociedade civil em várias cidades do país. Para sua finalização, se configurou de suma importância a realização da 1ª Conferência de Migrações e Refúgio (Comigrar), que foi considerada pela ONU (2014) um marco histórico na política migratória do país. O evento foi promovido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério das Relações Exteriores e Ministério do Trabalho; contou com o apoio de agências das Nações Unidas como UNODC, OIM, ACNUR e PNUD (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2014). A conferência, que foi de caráter consultivo, teve uma ampla participação de migrantes e refugiados e objetivou a promoção de um diálogo social a fim de subsidiar a construção de uma Política Nacional sobre Migrações e Refúgio pautada nos direitos humanos. Foram debatidos temas diversos, tais como: a cidadania e o reconhecimento da diversidade; os meios de prevenção e proteção em casos de violação de direitos; a sua integração e participação social; e sua inserção econômica e laboral no país (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2014).

De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2014), a Comigrar foi precedida por 202 conferências preparatórias, que contaram com a participação de entidades, de movimentos sociais, da comunidade acadêmica, de brasileiros no exterior, do governo, de estrangeiros no Brasil, entre outros. Esse processo culminou no encaminhamento para a etapa nacional de 2.840 propostas elaboradas por 5.374 participantes. Ao final da conferência, ocorreu a sintetização dessas propostas, que foram reunidas em um caderno e direcionadas ao Governo Federal (BRANDINO; MAEDA, 2015). Foi desse caderno que saíram algumas das propostas para o Anteprojeto de Lei de Migrações. Esse, por sua vez, contribuiu para o texto da recém-sancionada Lei 13.445, que na época estava em trâmite no Congresso – o PLS 288/2013, e, posteriormente, o PL 2.516/2015.

Além disso, é importante destacar o trabalho de uma coalizão5 de organizações que monitoraram a tramitação da nova lei e incidiram sobre sua formulação. Segundo Asano e Timo (2017, s.p.), “[...] em diferentes momentos ao longo de 2015 e 2016, essa coalizão apresentou propostas concretas à construção do texto [...]”, fazendo um diálogo de forma direta com autoridades e parlamentares por meio, principalmente, de audiências públicas. Ademais, mediante a publicação de artigos de opinião e notas de imprensa, instigou um amplo debate na sociedade, além de levar a questão para fóruns internacionais, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU (ASANO; TIMO, 2017).

Dito isto, tem-se que todo esse processo, de elaboração de propostas que pudessem contribuir direta ou indiretamente para a lei, foi visto de forma positiva, devido à forma como se deu e, também, pela diversidade dos atores envolvidos. Isto é,

[...] a construção do texto dessa nova legislação se deu de forma ampla e democrática, por meio de interlocuções entre o Congresso Nacional e a sociedade civil, por meio de palestras, debates, fóruns e audiências públicas que contaram com a participação de inúmeras entidades e instituições públicas. Nessas inúmeras ocasiões os legisladores ouviram todos os lados do debate, de modo que a discussão contou com considerações ligadas a direitos humanos, segurança nacional, questões burocráticas, acesso à justiça entre outras, o que possibilitou a construção de uma legislação efetivamente plural e moderna (PAZ, 2017, s.p.).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), chegou a emitir uma nota elogiando a ampla participação social nesse processo (CIDH, 2017).

Para Asano e Timo (2017), a aprovação dessa nova lei se faz interessante, também, porque além de ter contado com um esforço de parlamentares e autoridades públicas já envolvidas no processo, contou, nomeadamente, com a persistência da sociedade civil, que contribuiu com sugestões precisas e pressionou para aprovação de propostas que garantissem os direitos humanos. Tendo em vista essa atuação, seguida a aprovação da lei, várias organizações sociais encaminharam um ofício ao Ministério da Justiça e Segurança Pública reivindicando a participação social também no processo de regulamentação da mesma (MISSÃO PAZ, 2017).

Apesar de todo o engajamento supracitado, o texto, que foi sancionado mais de um mês depois de sua aprovação pelo Congresso, teve vinte trechos vetados pelo atual presidente Michel Temer. Pontos importantes como o parágrafo que dispunha sobre a circulação de povos indígenas nas terras tradicionalmente ocupadas; o que versava sobre o direito aos estrangeiros visitantes de acessarem o Sistema Único de Saúde (SUS) de forma gratuita; e, o parágrafo que dava direito aos migrantes de exercerem cargo, emprego ou função pública; foram vetados (BRANDINO; MAEDA, 2015).

Esses vetos foram duramente reprovados por organizações e especialistas, pois foram decididos “a portas fechadas e ignorando a longa construção de consensos junto à sociedade civil” (CONECTAS, 2017a, s.p.). Contudo, um dos vetos que gerou fortes críticas foi o artigo que concedia autorização de residência aos migrantes que já se encontravam em território brasileiro até julho de 2016, independente de sua situação migratória. Cabe notar que essa medida, conhecida como “anistia migratória”, já foi concedida anteriormente, como em 1999, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e em 2009, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (CONECTAS, 2017a). É importante acrescentar que na contramão dessa negativa do governo, algumas ações foram iniciadas cuja finalidade é a de se elaborar de um novo Projeto de Lei que conceda anistia a essas pessoas.

Os vetos devem ser compreendidos como o resultado da pressão exercida por grupos conservadores, que são compostos por membros do próprio governo e da sociedade, que enxergaram na proposta uma ameaça à economia e à soberania nacional. Essas pressões, advindas, principalmente, de setores como a Polícia Federal, o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), foram determinantes para a ocorrência de tais vetos (DELFIM, 2017a), reproduzindo os vestígios, não tão apagados, da trajetória de construção social hierárquica brasileira. Nesse contexto, observamos que, conforme a lei avançava, houve a intensificação do número de atos contrários a ela. De acordo com Delfim (2017a), ocorreram alguns protestos de caráter xenofóbico e islamofóbico em São Paulo e, manifestações via internet de pessoas não favoráveis à aprovação da lei. Além, claro, das cotidianas e constantes demonstrações indiretas de resistência à integração e permanência dos imigrantes no Brasil.

As organizações envolvidas com a temática, em consonância com a CONECTAS (2017a), consideraram que, mesmo com as alterações, a versão que foi sancionada ainda representava um importante avanço no âmbito da política migratória brasileira, orientando- se pelos princípios da igualdade e da não discriminação, que se configuram como essenciais para a salvaguarda dos direitos humanos (MISSÃO PAZ, 2017). Ademais, a aprovação de uma lei de migração mais moderna, segundo Paz (2017, s.p.),

[...] se faz em consonância com os princípios democráticos da Constituição de 1988 e atualiza o viés de hipertrofia da proteção à segurança nacional do antigo Estatuto do Estrangeiro de 1980, pelo respeito e prevalência aos direitos humanos face ao cenário global.

Deste modo, a nova lei endossa a posição e a participação do Brasil na ordem internacional, principalmente no que diz respeito às suas obrigações internacionais no arcabouço dos direitos humanos e das questões humanitárias (PAZ, 2017).

Cabe à ressalva que, ao contrário do Estatuto do Estrangeiro de 1980, a lei brasileira de refúgio (Lei 9.474/1997), que completou vinte anos em julho de 2017, é vista como avançada. Ela é considerada para Asano e Timo (2017, s.p.), “[...] um marco legal de referência para outros países da região, apesar dos desafios relativos à sua plena implementação”. A Lei 9.474 internaliza e amplia a definição de refugiado presente na Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, reconhecendo como refugiado toda pessoa que, por fundado temor de perseguição devido sua raça, religião, nacionalidade, opinião política, grupo social ou por existir uma situação de grave e generalizada violação dos direitos humanos, foge de seu país ou local de sua residência habitual (BRASIL, 1997). A Lei de Refúgio também engloba importantes princípios como a não discriminação entre nacionais, solicitantes de refúgio e refugiados e, o non-refoulement6.

Para mais, essa lei criou o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), que é um órgão tripartite, cuja formação é composta por representantes do Governo Federal, que possui voz e voto, representantes da sociedade civil, que possuem voz e voto, e representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que possui apenas voz. O CONARE é responsável por analisar os casos dos solicitantes de refúgio e reconhecê-los como refugiado (ou não), pela formulação de políticas no Brasil para refugiados e pela integração local dos mesmos (BRASIL, 1997). É importante destacar que, segundo dados do ACNUR (2017), até o final de 2016 havia no Brasil um total de 9.552 refugiados provenientes de 82 nacionalidades. Desse total, 8.522 foram reconhecidos pelas vias tradicionais de elegibilidade, 713 chegaram ao Brasil por meio da política de reassentamento e 317 por intermédio da reunião familiar (ACNUR, 2017).

Frente a isso, tem-se que, de acordo com Asano e Timo (2017, s.p.),

[...] um dos problemas de uma legislação inadequada em matéria de migração como no caso do Estatuto do Estrangeiro é a “sobre-utilização” do instituto do refúgio como uma saída para a necessidade não suprida de regularização.

Em outras palavras, a vigência do Estatuto do Estrangeiro estabelecia uma série de obstáculos para aqueles imigrantes que desejam regularizar sua situação migratória no Brasil. Na tentativa de conseguir a documentação básica para permanecer no país, esses imigrantes acabavam por recorrer à Lei 9.474/1997, mesmo que sua situação não se configurasse como um caso de refúgio propriamente dito (BRANDINO, 2017). Fato esse que tem resultado, também, em uma sobrecarga de processos para o CONARE, que atualmente, segundo Brandino (2017), possui aproximadamente 27 mil solicitações de refúgio pendentes de análise.

Com a Lei 13.445/2017 e os avanços que ela representa, aspira-se, portanto, que o recurso de utilização da Lei de Refúgio não seja mais necessário; que os migrantes que chegam ao Brasil e buscam sua regularização possam alcançá-la sem grandes barreiras burocráticas. Isso porque, apesar dos vetos importantes por parte do presidente Michel Temer, que reduzem certa proteção a essa população, ainda predominam, segundo o texto, os princípios de direitos humanos, igualdade e liberdade desses migrantes no território brasileiro.

Há de se considerar, no entanto, que persistem, ainda, outros desafios à plena consolidação de uma visão igualitária e verdadeiramente humanitária quanto à migração no Brasil. Pois, além de uma trajetória permeada por desafios à construção da lei 13.445/2017, após 180 dias de sua promulgação, a lei entrou em vigor no dia 21 de novembro, mesmo dia em que ocorreu, também, a publicação do decreto não satisfatório que a regulamenta. E, apesar das tentativas de advocacy, com a finalidade de “[...] derrubar o maior número possível dos vetos e manter a integridade do texto lei” (MISSÃO PAZ, 2017, s.p.), não se logrou êxito e os vetos permaneceram. Além disso, cerca de duas semanas anteriores a sua divulgação, membros do Executivo realizaram uma consulta pública acerca da minuta do decreto, porém, nenhuma recomendação feita pela sociedade civil foi acatada, desconsiderando o processo de articulação social que vem ocorrendo há meses (CONECTAS).

Diversos artigos do Decreto 9.199/2017 têm sido alvo de duras críticas, tanto por parte das organizações da sociedade civil, quanto pela Defensoria Pública da União (DPU). Além de sua construção ter sido marcada pela falta de transparência do Governo Federal e por pouco espaço de diálogo junto aos atores sociais – ao contrário do que ocorrera com a formulação da lei –, esse decreto deturpa e contraria pontos estipulados na própria lei, sendo considerado como uma ameaça e um retrocesso, pois retoma algumas aspirações do Estatuto do Estrangeiro. O decreto apresenta lacunas e estabelece para “atos ministeriais futuros” critérios e condições para acesso a direitos (DELFIM, 2017b). Ademais, pontos como a previsão da prisão do “imigrante clandestino”, a não regulamentação dos vistos e autorização de residência por motivos humanitários, a restrição à reunião familiar e a cobrança das taxas para os solicitantes de refúgio foram amplamente reprovados pelas organizações da sociedade civil envolvidas com a temática. De acordo com Delfim (2017b), a DPU encaminhou um documento com 47 pedidos de modificações e as organizações que trabalham nesse campo estão se articulando para que haja medidas cabíveis contra os trechos do decreto que contrariam a lei e para que ocorra a regulamentação de partes importantes que não foram contempladas pelo decreto (CONECTAS, 2017b).

Novos horizontes, velhos desafios

Apesar dos vetos e de um decreto contraditório, que impõem barreiras à humanização do tratamento da migração, é importante elucidar que a Lei 13.445/2017 ainda é considerada um avanço constitucional, principalmente no que diz respeito à participação e à manifestação política dos imigrantes e no combate ao tráfico humano e à xenofobia. Em primeiro lugar, cabe ressaltar a preponderância dos direitos humanos, da não discriminação e da integração e participação cidadã do migrante na definição dos princípios e diretrizes que regem a nova legislação (BRASIL, 2017a).

Sobrepõe-se, no escopo da nova lei, um discurso mais preocupado com a permanência e regulamentação dos imigrantes em território nacional, do que com a possível ameaça que possam significar ao Estado. São resguardados, a partir dessa legislação, os direitos à educação, “[...] acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória” (BRASIL, 2017a). O novo texto fornece, ainda, diretrizes de facilitação de concessão de vistos, temporários ou de residência, em contextos específicos. A lei prevê, por exemplo, o direito à reunião familiar, que pode vir a facilitar a entrada e permanência de cônjuges e filhos de imigrantes já residentes no país. Além disso, a facilitação da entrada de imigrantes está circunscrita na concessão de visto humanitário, que:

[...] poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento (BRASIL, 2017a).

A Lei 13.445/2017 representa, portanto, uma importante alteração constitucional no tocante à matéria de migrações no Brasil, principalmente por permitir compreender a imigração como um direito, fora do âmbito da ilegalidade e do crime. Entretanto, há, ainda, alguns percalços políticos e sociais que podem obstruir a implementação integral desse novo texto.

Cabe ressaltar, em primeiro lugar, que, embora a legislação exalte uma postura muito mais humanitária quanto à imigração, as diretrizes e políticas de instrumentalização desse atendimento ao imigrante ainda estão soltas e indefinidas. A assistência ao imigrante, ainda que prevista pela lei, não está, todavia, assegurada por uma política pública específica. Dessa forma, quando (e se) formuladas, o que pode depender, novamente, das pressões advindas dos atores sociais, serão altamente discricionárias. Ou seja, a assistência fornecida ao imigrante dependerá, em grande medida, dos chamados burocratas de nível de rua (street-level burocracy), responsáveis por implementar as políticas no seu cotidiano, trabalhando diretamente com essa população. Segundo Lipsky (2010), esses burocratas são capazes de redesenhar uma política pública, pois têm valores e convicções próprios que tendem a influenciar suas ações.

Nesse sentido, deve-se levar em conta que o Brasil, apesar da sua formação cultural, étnica e racial diversa, tem reproduzido, historicamente, uma estrutura social racista e xenofóbica, como pode ser observado na trajetória da política migratória nacional, bem como na resistência à aprovação da Lei 13.445/2017 e nos episódios cotidianos de agressões físicas e morais contra as minorias. Dessa forma, diante da discricionariedade prevista na provisão de serviços públicos, abre-se espaço para que essas discriminações possam permear a atenção dada aos imigrantes. Além disso, outro aspecto concernente à efetivação dessa legislação refere-se à capacitação dos burocratas. Novamente, a implementação da legislação pode ser enfraquecida caso não sejam fornecidos o treinamento e o conhecimento necessários para a comunicação e o atendimento às necessidades dos imigrantes, tais como aspectos linguísticos, culturais e, até mesmo, conhecimentos técnicos, referentes à documentação e aos direitos que dispõem os imigrantes.

Na esteira dessa reflexão, destaca-se um ponto que não foi considerado pela nova lei e que é uma grande preocupação para os atores sociais engajados: a transferência da responsabilidade da Polícia Federal pelas questões migratórias – como a regularização – para um órgão de cunho civil, que tenha funções semelhantes à de uma autoridade migratória. Fato esse que pode ser considerado como um resquício dos princípios de segurança previstos no Estatuto do Estrangeiro, pois a Polícia Federal opera sob o prisma da segurança, o que torna difícil garantir a prevalência dos direitos humanos.

No escopo da formulação e implementação de políticas públicas que possam resguardar o atendimento humanitário aos imigrantes no Brasil, cabe ressaltar, ainda, a dependência da disponibilidade de recursos, sobretudo financeiros, para sua viabilização e eficácia. A nova lei, ao não prever e/ou determinar a criação de uma política específica, exime as entidades federadas, ou a União, da responsabilidade de prover recursos para criação e execução de uma iniciativa pública nesse sentido. Assim, tendo em vista as desigualdades que permeiam a estrutura federativa do Brasil, especialmente no tocante ao repasse de recursos a municípios menores, a não previsão de recursos para cumprimento dessas regulamentações pode configurar outro desafio à implementação das diretrizes da nova legislação.

Em vias de conclusão, cabe ressaltar que a participação das entidades sociais nesse processo tem sido preponderante e de extrema importância, como destacado acima. Entretanto, é importante frisar a necessidade de que essa articulação seja direcionada, também, para o protagonismo dos imigrantes, para que possam ser sujeitos da própria luta. Para isso, portanto, outro aspecto a ser considerado como um desafio à integração do imigrante no Brasil, e que nem mesmo é mencionado no novo texto, diz respeito ao impedimento do exercício do direito político pelos imigrantes. Ou seja, a impossibilidade de participar de eleições municipais, estaduais ou nacionais, seja como eleitor ou candidato, reflete a resistência à plena participação cidadã do imigrante no Brasil. Além disso, o veto à participação de imigrantes em concursos públicos, impedindo-os de exercer qualquer cargo, emprego ou função pública, também pode ser visto como uma forma de rechaço a uma maior integração e atuação do imigrante em território nacional. Dessa forma, deve-se persistir na direção dessa conquista, para que, através do direito à voz, o imigrante possa manifestar suas reais necessidades e contribuições à construção política, social e cultural brasileira.

Considerações finais

Na contramão da postura restritiva de muitos países ao redor do globo, os quais têm criado políticas rígidas de restrição à imigração – sejam elas jurídicas, por meio de leis e acordos, ou até mesmo físicas, através da construção de muros e a implantação de equipes policiais altamente armadas e equipadas nas fronteiras –, o Brasil acaba de dar um passo mais progressista. O país, que se configura como o lar de milhares de imigrantes, mostrou grande evolução ao sancionar recentemente a nova Lei migratória, que é considerada um avanço para o país, especialmente se comparada às legislações anteriores.

A Lei 13.445/2017 foi aprovada após um longo caminho nas instâncias parlamentares e substituiu uma visão militarizada das leis de imigração. Como pôde ser observado, são inúmeras e bastante positivas as diretrizes dispostas na nova lei. Com princípios mais humanizados, priorizando a universalidade de direitos, a igualdade e a não discriminação, a nova lei supera o viés que preza pela segurança nacional e passa a se pautar no paradigma dos direitos humanos, estando, assim, em consonância tanto com a Constituição de 1988, quanto com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Há de se recordar, entretanto, que o Brasil ainda não é um signatário da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, mas espera-se que, a partir da aplicação da nova legislação, o último país da América do Sul, ao lado do Suriname, a não assinar a convenção seja motivado a rever seu posicionamento internacional.

Além disso, como foram abordadas neste artigo, outras insuficiências ainda permeiam o posicionamento brasileiro quanto à imigração. Apesar dos avanços, como a possibilidade de o imigrante participar de manifestações de cunho político sem ser criminalizado; os trechos vetados – os quais garantiriam uma maior integração dos imigrantes, como a participação em concursos públicos e a anistia migratória – deixam claro que ainda há resistência quanto à garantia da integração dessa população à sociedade nacional. Como também exposto no artigo, outra incompletude da Lei 13.445/2017 é a não deliberação de responsabilidades públicas com relação à acolhida aos imigrantes, podendo dificultar a obtenção de recursos para a sua concretização e um vácuo de incumbências que será sentido, principalmente, em situações de imigração maciça, como ocorreu com a vinda dos haitianos para o Brasil.

Em suma, embora haja inúmeros avanços com a nova lei de migração, ela não discorre sobre uma gama de direitos que poderiam assegurar a maior integração dos imigrantes no país, e tampouco é clara com relação à deliberação de deveres e recursos que garantam a acolhida, bem como a formulação e implantação de políticas públicas nas unidades da federação. Além disso, o processo de regulamentação não contou com a participação da sociedade civil e o seu decreto, em diversos pontos, é contraditório a própria lei, chegando a representar uma ameaça. A nova legislação representa, sem dúvidas, um progresso significativo em matéria de migrações, entretanto, não deve ser respaldada como um documento finalizado. Para que os princípios e diretrizes dessa nova lei sejam, de fato, consolidadas e postas em prática, é fundamental que os atores sociais envolvidos nesse longo processo mantenham-se engajados. Da mesma forma, o engajamento e as pressões sociais devem persistir a fim de que outras questões fundamentais, não incorporadas no texto da lei, sejam inseridas num futuro próximo.

Quais são as leis para imigração no Brasil?

O artigo 4º da Lei n. 13.445/2017 prevê direitos aos migrantes no território brasileiro, como a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Quais as principais diferenças entre o Estatuto do Estrangeiro e a nova lei de migração?

Enquanto o Estatuto do Estrangeiro limita sua aplicação aos não nacionais brasileiros, sem indicar qualquer definição, a Lei de Migração se destina a pessoas em cinco situações diversas: i) imigrante, o não nacional; ii) emigrante, para brasileiros residentes no exterior; iii) residente fronteiriço, para pessoas que ...

Quais são as hipóteses de expulsão presentes na lei de migração?

O artigo 65 (Lei 6815/80) determina: “É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”.

O que é a Lei de imigração?

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.