O que é desconsideração da personalidade?

O que é desconsideração da personalidade?

1) Definição:

A desconsideração da personalidade jurídica (ou levantamento da personalidade jurídica) é:
– a derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respetivos sócios ou acionistas [1]J. M. Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial – Das Sociedades, Volume II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 174.; ou, por outras palavras,
– a operação pela qual a personalidade jurídica de uma pessoa coletiva é, em concreto, afastada ou retirada [2]Maria de Fátima Ribeiro, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a «desconsideração da personalidade jurídica», Almedina, Coimbra, 2009, págs. 67 e 68..

  • 1) Definição:
  • 2) Fundamento:
  • 3) Natureza subsidiária, excecional e casuística:
  • 4 e 5) Grupos de casos:
  • 4) Casos de responsabilidade:
    • 4.3.1) Descapitalização provocada por sócios (ou atentado a terceiros):
    • 4.3.2) Mistura ou confusão de patrimónios / esferas:
    • 4.3.3) Subcapitalização material manifesta:
  • 5) Casos de imputação:
    • 5.1) Obrigação de não concorrência:
    • 5.2) Impedimento de voto:


Nota: ver bibliografia sobre a desconsideração da personalidade jurídica na presente nota de rodapé [3]J. M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial – Das Sociedades, Volume II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, págs. 174 a 184; A. Menezes Cordeiro, colab. A. Barreto Menezes Cordeiro, … Continuar a ler.

2) Fundamento:

Na maioria das vezes, a desconsideração da personalidade jurídica visa corrigir comportamentos ilícitos e fraudulentos dos sócios ou acionistas que abusaram da personalidade coletiva da sociedade com prejuízo para terceiros, seja por atuarem em:
– abuso do direito,
– em fraude à Lei,
– em violação das regras da Boa-fé (com estes três fundamentos ver, por exemplo: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2007-06-26 [4]Logo no sumário; Processo n.º 07A1274; Relator: Afonso Correia; consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/06b4c95604f5c7198025730600489d0e?OpenDocument),
– em violação dos bons-costumes (como também já foi defendido [5]A. Menezes Cordeiro, colab. A. Barreto Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 382.); ou ainda,
– em violação de regras e princípios gerais, incluindo a ética dos negócios [6]A. Menezes Cordeiro, colab. A. Barreto Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 382..

3) Natureza subsidiária, excecional e casuística:

A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto de natureza subsidiária, excecional e casuística.

3.1) Subsidiária:

Uma vez que não se deve aplicar:
a) se se verificarem os pressupostos de outros instrumentos ou mecanismos jurídicos específicos ou
b) se existirem meios alternativos e mais adequados para assegurar a justiça material do caso concreto [7]Nesta última parte, Diogo Costa Gonçalves, op. cit., pág. 115..

Pense-se, por exemplo, no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE] [8]Consultar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=85&tabela=leis, nos mecanismos:
– do incidente da qualificação da insolvência como insolvência culposa;
– da resolução em benefício da massa insolvente; e/ou,
– no dever de apresentação à insolvência (em vez da desconsideração da personalidade jurídica por subcapitalização material manifesta – ver em baixo ponto 4.3.3).

No âmbito penal, considere-se, nomeadamente o crime de insolvência dolosa previsto e punido no art. 227.º do Código Penal [9]Consultar o Código Penal no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=109&tabela=leis, com a correspondente responsabilidade criminal e patrimonial para o(s) visado(s).

3.2) Excecional:

Porque:
– tem natureza subsidiária (estas duas características estão intimamente ligadas) e
– porque se destina, especialmente nos casos de responsabilidade, a corrigir apenas comportamentos graves e abusivos dos sócios ou acionistas que tenham provocado, em concreto, prejuízos consideráveis a terceiros, especialmente, credores da sociedade; e
– porque a sua aplicação faz perigar a segurança, a estabilidade, a certeza e a confiança dos institutos da “responsabilidade limitada” e da “pessoa coletiva” em geral (que estão hoje, na prática, estreitamente relacionados) [10]Maria de Fátima Ribeiro, op. cit., pág. 130..

A responsabilidade limitada é um princípio fundamental e estrutural do sistema da economia de mercado:

Com efeito, a responsabilidade limitada e o princípio que lhe está associado da separação entre a pessoa coletiva e os seus membros, decorrente da atribuição àquela de personalidade jurídica com autonomia patrimonial perfeita são hoje princípios fundamentais do moderno Direito das Sociedades Comerciais e, até mesmo, do próprio capitalismo ou economia de mercado.

Na verdade, a responsabilidade limitada ou, o mesmo é dizer, a sociedade de responsabilidade limitada:
i) terá sido mesmo a inovação legislativa que mais contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo [11]Rui Pinto Duarte, Escritos sobre Direito das Sociedades, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 63; ver também, neste sentido, Alexandre Mota Pinto, Do Contrato de Suprimento – O … Continuar a ler,
ii) tendo já sido considerada como “a mais importante descoberta dos tempos modernos – ainda mais importante do que a descoberta do vapor ou da eletricidade” [12]Nicholas Murray Butler apud J. Engrácia Antunes, Os grupos de sociedades – Estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, … Continuar a ler.

3.3) Casuística:

Porque terá que ser cuidadosamente ponderada, de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso, tendo em conta, nomeadamente:
i) não só a “imagem global” (fraudulenta ou não) da situação,
ii) como também as legítimas expectativas: dos terceiros, da sociedade comercial em causa e também dos próprios sócios [13]A. Soveral Martins, op. cit., pág. 97., especialmente neste último caso, a legítima expectativa que estes têm na operacionalidade do benefício da responsabilidade limitada.

4 e 5) Grupos de casos:

Existem dois grandes “grupos de casos” de desconsideração da personalidade jurídica:
a) casos de responsabilidade e
b) casos de imputação [14]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 176 e 177 a 185 e Maria de Fátima Ribeiro, op. cit., pág. 131 a 175..

4) Casos de responsabilidade:

Nos casos de responsabilidade, os sócios perdem o benefício ou privilégio da responsabilidade limitada, ou seja, perdem o benefício de não responderem com o respetivo património pessoal pelas dívidas da sociedade.

Ou seja, neste grupo de casos, a desconsideração “da personalidade jurídica” corresponde, na verdade, à desconsideração do benefício da responsabilidade limitada dos sócios das sociedades de responsabilidade limitada.

4.1) Requisitos (cumulativos):

i) Comportamento ilícito e culposo do(s) sócio(s) ou acionista(s);
ii) Danos ou prejuízos para os credores; e,
iii) Nexo de causalidade entre o comportamento ilícito e culposo do(s) sócio(s) ou acionista(s) e os danos ou prejuízos causados aos credores [15]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 179..

4.2) Consequências da desconsideração:

Desconsiderando-se a personalidade jurídica da sociedade, respondem pelas dívidas da sociedade:
– em primeira linha, o património da sociedade e,
– subsidiariamente, o património pessoal dos sócios que tenham praticado os atos ilícitos (responsabilidade subsidiária).

4.3) Casos de responsabilidade – quais são:

4.3.1) Descapitalização provocada por sócios (ou atentado a terceiros):

Definição:

Nos casos de descapitalização provocada por sócios ou atentado a terceiros [16]Empregando esta última expressão, A. Menezes Cordeiro, colab. A. Barreto Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 377., os sócios ou acionistas, muitas vezes na qualidade de gerentes (nas sociedades por quotas ou sociedades unipessoais por quotas) ou administradores (nas sociedades anónimas) transmitem dinheiro e/ou bens do património da sociedade para o património de outros sujeitos de Direito nomeadamente:
a) para o seu próprio património pessoal (dos sócios/acionistas);
b) ou para o património de outros sujeitos (interposta[s] pessoa[s]), por exemplo,
          – outra sociedade destinada à mesma atividade,
          – sujeitos com quem os sócios/acionistas tenham relações especiais: familiares, namorados(as), amigos, etc (testas-de-ferro – é a chamada interposição fictícia de pessoas).

Ou seja, os sócios/acionistas praticam atos de dissipação, delapidação, ocultação, depauperamento, ou sonegação do património da sociedade, com prejuízo para os credores da sociedade (bancos, fornecedores, trabalhadores, clientes, Estado).

Modus operandi:

Essa transmissão ou transferência de dinheiro e/ou bens pode operar, por exemplo, através de:
– contratos de doação,
– contratos de compra e venda (muitas vezes, com simulação relativa, ou seja, com preços inferiores ou mesmo muito inferiores ao valor de mercado), etc.

Muitas vezes, a sociedade cujo património é delapidado já se encontra em situação económica difícil ou mesmo em situação de insolvência atual.

4.3.1.1) Descapitalização provocada por sócios em caso de insolvência da sociedade:

I) Desconsideração da personalidade jurídica vs incidente de qualificação da insolvência como culposa:

Caso a sociedade seja declarada insolvente, muitas vezes haverá sobreposição de pressupostos entre esta hipótese de desconsideração de personalidade jurídica e o incidente de qualificação da insolvência como culposa, concretamente por ocultação, física ou jurídica, neste último caso, através de transmissão a terceiros [17]Na jurisprudência, cfr. por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no link: … Continuar a ler, no todo ou em parte considerável, do património da sociedade (cfr. art. 186.º, n.º 2 als. a) e d) do CIRE [18]Consultar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=85&tabela=leis).

Nesse caso, atenta a natureza subsidiária da desconsideração da personalidade jurídica, deve aplicar-se apenas o regime do incidente da qualificação de insolvência como culposa.

II) Desconsideração da personalidade jurídica vs resolução em benefício da massa insolvente:

Em caso em insolvência da sociedade, os atos que descapitalizaram a sociedade também podem, em certos termos, ser resolvidos em benefício da massa insolvente (cfr. arts. 120.º e 121.º, em especial, 121.º, n.º 1 al.b) do CIRE).

Assinale-se, porém, que a resolução em benefício da massa insolvente dos atos prejudiciais à massa insolvente (ou seja, prejudiciais aos credores da insolvência) não obsta à aplicação do incidente de qualificação de insolvência: podem operar os dois em simultâneo se se verificarem os respetivos pressupostos.

4.3.2) Mistura ou confusão de patrimónios / esferas:

Em geral:

Neste grupo de casos, os sócios ou acionistas violam a autonomia e separação do património da sociedade, misturando-o, confundindo-o ou promiscuindo-o com o património de outros sujeitos, especialmente com o seu próprio património pessoal.

Por exemplo:

transmissão de dinheiro e/ou bens da sociedade para a sua esfera pessoal (dos sócios) (por exemplo: “pelo menos três quintos das receitas da sociedade, que deram azo aos lucros foram transferidas pelo Réu para a sua conta pessoal” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2018-06-19 [19]Processo n.º 446/11.9TYLSB.L1.S1; Relator: Graça Amaral; consultar no link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/22EF497267F835D5802582B3003E2E15); e/ou,
pagamento de despesas pessoais (dos sócios) com o dinheiro da sociedade (por exemplo: “pagamento de condomínio de um apartamento em Cascais que não pertencia à sociedade nem era utilizado por esta na sua atividade, pagamentos de alugueres mensais de um espaço na marina quando a sociedade não possuía qualquer barco” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2011-05-31 [20]Processo n.º 7857/06.0TBCSC.L1-7; Relator: Maria João Areias; consultar no link: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ffffa051cb7113f5802578c7003a5420).

Soluções legais expressas de desconsideração da personalidade jurídica por mistura ou confusão de patrimónios:

a) Art. 84.º – Responsabilidade pessoal e ilimitada do sócio único pelas dívidas da sociedade que tenha ficado reduzida a um único sócio:

Se, cumulativamente:
i) uma sociedade comercial for constituída originariamente como pluripessoal (por exemplo, for constituída uma sociedade por quotas por dois ou mais sócios ou for constituída uma sociedade anónima (S.A.) por cinco ou mais acionistas (cfr. arts. 7.º, n.º 2 e 273.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais [doravante CSC] [21]Consultar o Código das Sociedades Comerciais no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis),
ii) essa sociedade ficar, entretanto, por qualquer causa, reduzida a um único sócio,
iii) essa sociedade for posteriormente declarada insolvente e se
iv) ficar provado que, no período posterior à concentração das quotas ou das ações, não foram observados os preceitos da lei que estabelecem a afetação do património da sociedade ao cumprimento das respetivas obrigações…
…o sócio único responde ilimitadamente pelas dívidas da sociedade contraídas no período posterior à concentração das quotas ou das ações (art 84.º do CSC).

Para mais detalhes sobre este regime ver o nosso artigo: sociedade por quotas reduzida a um único sócio.

b) Art. 270.º-F – Responsabilidade do sócio único nas sociedades unipessoais por quotas por irregularidades na celebração de contratos com a própria sociedade:

Os negócios jurídicos, especialmente contratos, celebrados entre o sócio único e a sociedade unipessoal por quotas (por ex: contratos de compra e venda, contratos de doação, etc…) devem:
a) servir a prossecução do objeto social da sociedade; e
b) obedecer à forma legalmente prescrita e, em todos os casos, observar, pelo menos, a forma escrita;

Devem ser patenteados os documentos de onde constam esses negócios jurídicos conjuntamente com o relatório de gestão e os documentos de prestação de contas; qualquer interessado pode, a todo o tempo, consultá-los na sede da sociedade.

A violação de qualquer destas regras implica a nulidade dos negócios jurídicos celebrados e responsabiliza ilimitadamente o sócio (art 270.º-F do CSC).

4.3.2.1) Mistura ou confusão de patrimónios em caso de insolvência da sociedade:

1) Desconsideração da personalidade jurídica vs incidente de qualificação da insolvência como culposa:

Caso a sociedade seja declarada insolvente, poderá haver sobreposição de pressupostos entre esta hipótese de desconsideração de personalidade jurídica e o incidente de qualificação da insolvência como culposa, concretamente quando os seus administradores (que sejam sócios da sociedade), de direito ou de facto, tenham:
– disposto dos bens (incluindo dinheiro) da sociedade em proveito pessoal ou de terceiros;
– exercido, a coberto da personalidade coletiva da sociedade, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da sociedade;
– feito do crédito ou dos bens da sociedade uso contrário ao interesse desta, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra sociedade na qual tenham interesse direto ou indireto (art. 186.º nºs 1 e 2 als. d), e) e f) do CIRE).

Nesse caso, como já foi referido, tendo em conta que a desconsideração da personalidade jurídica tem natureza subsidiária, deve aplicar-se apenas o regime do incidente da qualificação de insolvência como culposa, com as respetivas consequências.

2) Descapitalização provocada por sócios vs resolução em benefício da massa insolvente:

Caso a sociedade seja declarada insolvente, os atos violadores da autonomia e separação do respetivo património, por mistura, confusão ou promiscuidade com o património de outros sujeitos também podem ser, em certos termos, resolvidos em benefício da massa insolvente (cfr. arts. 120.º e 121.º do CIRE).

A aplicação em concreto da resolução em benefício da massa insolvente de atos prejudiciais à massa insolvente (ou seja, prejudiciais aos credores da insolvência) não obsta à aplicação em simultâneo do incidente de qualificação da insolvência.

4.3.3) Subcapitalização material manifesta:

Definição – o que é:

Uma sociedade comercial encontra-se em situação de subcapitalização material manifesta quando:

i) o seu capital próprio (património líquido: ativo deduzido do passivo) é claramente insuficiente para o exercício da sua atividade ou objeto social, tendo em conta, nomeadamente, a natureza e dimensão da atividade e os riscos associados, como obrigações contratuais inevitáveis, obrigações extracontratuais eventuais (responsabilidade civil extracontratual),

ii) e essa insuficiência não é suprida por empréstimos (suprimentos) dos sócios [22]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 183..

Subcapitalização originária e superveniente:

A subcapitalização material manifesta pode ser:
a) originária ou inicial, se for logo evidente no momento da constituição da sociedade; ou pode ser,
b) superveniente, se se manifestar apenas em momento posterior, decorrente, por exemplo, de perdas graves ou de ampliação do objeto social [23]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 183..

Consequências:
a) No caso de subcapitalização material originária, respondem subsidiária (ver: responsabilidade subsidiária) e ilimitadamente todos os sócios.
b) No caso de subcapitalização superveniente só responderão subsidiária e ilimitadamente os sócios «controladores» da sociedade (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2012-03-29 [24]Consultar no link: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc7323%2016039802565fa00497eec/d26c12b4ce42e24a80257c69005eaa33?OpenDocument; e também J. M. Coutinho de Abreu, ibidem.).

Desconsideração da personalidade jurídica vs dever de apresentação à insolvência:

Importa assinalar que as sociedades comerciais têm um dever de apresentação à insolvência consagrado no art. 18.º do CIRE [25]Consultar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=85&tabela=leis, cuja violação gera o surgimento de uma presunção de culpa grave sobre os respetivos gerentes ou administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência da sociedade, que é, contudo, ilidível por prova em contrário (iuris tantum).

Se os gerentes ou administradores não conseguirem ilidir esta presunção de culpa grave que sobre eles recai, a insolvência da sociedade será necessariamente qualificada como culposa, com as correspondentes consequências.

Ora, a desconsideração da personalidade jurídica por força de subcapitalização material manifesta superveniente é subsidiária do dever de apresentação à insolvência. Por conseguinte, se a sociedade comercial for declarada insolvente e se tiver havido violação do dever de apresentação à insolvência, aplica-se o respetivo regime jurídico em detrimento da desconsideração da personalidade jurídica.

5) Casos de imputação:

Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais por “imputação”:
a) determinados comportamentos, conhecimentos ou qualidades dos sócios ou acionistas são referidos ou imputados à sociedade; ou,
b) determinados comportamentos, conhecimentos ou qualidades da sociedade são imputados aos sócios ou acionistas [26]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., págs. 176 e 177 a 185..

5.1) Obrigação de não concorrência:

Fonte:

A obrigação de não concorrência pode resultar:
– de um contrato (pacto ou cláusula de não concorrência);
– da Lei, de forma expressa. Por exemplo, os gerentes das sociedades por quotas não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, atividade concorrente com a atividade da sociedade (art. 254.º, n.º 1 do CSC [27]Consultar o Código das Sociedades Comerciais no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis); ou
– da Lei, mas de forma tácita. Por exemplo, o sujeito, pessoa singular ou pessoa coletiva, especialmente, sociedade comercial, que trespassa um estabelecimento comercial fica vinculado a uma obrigação implícita de não concorrência.

Constituir uma sociedade para contornar a obrigação:

Ora, se o sujeito, pessoa singular ou pessoa coletiva, que está vinculado à obrigação de não concorrência constitui uma sociedade unipessoal por quotas ou participa na constituição de uma sociedade por quotas ou anónima com outros sócios, mas fica, em qualquer caso, com o controlo da sociedade, com um objeto igual ou semelhante ao do estabelecimento comercial alienado, especificamente com o objetivo de contornar a obrigação de não concorrência, deve a personalidade jurídica da sociedade ser desconsiderada.

Com efeito, afastada a capa ou máscara da sociedade vê-se o trespassante a concorrer com o trespassário [28]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 177..

Uma nota para assinalar que muitas vezes, para o mesmo efeito, mas de forma um pouco mais sofisticada ou, pelo menos, mais dissimulada e, logo, mais difícil de sindicar, ao invés de se constituir diretamente uma sociedade, recorre-se a testas-de-ferro (interposição fictícia de pessoas), ou seja, constitui-se uma sociedade em nome de alguém com quem o sujeito visado tenha relações especiais: familiares, namorados(as) amigos, etc.

5.2) Impedimento de voto:

O sócio ou acionista não pode votar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente a certas matérias, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade (cfr. arts. 251.º e 384.º, n.º 6 do CSC).

Por exemplo:

Ora, suponhamos que a sociedade Baleias e golfinhos unipessoal, Lda. tem uma quota na sociedade por quotas Citações, Lda. A sociedade Baleias e golfinhos, unipessoal, Lda. tem como sócio único Abel.

Abel fez uma proposta de compra do estabelecimento comercial da sociedade Citações, Lda. Ora, Abel não é, em bom rigor, sócio de Citações, Lda. Contudo, pelo facto de Abel ter o domínio total da sociedade Baleias e golfinhos, unipessoal, Lda., deve entender-se que esta última está impedida de votar na deliberação sobre a venda do estabelecimento comercial [29]J. M. Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume IV, Coord. J. M. Coutinho de Abreu, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 75..

Abel

Baleias e golfinhos, unipessoal, Lda.

Citações, Lda.

O que significa desconsideração da personalidade?

A desconsideração da personalidade jurídica é a forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais a mesma foi criada. Além disso, é a forma de limitar e coibir o uso indevido deste privilégio que é a pessoa jurídica, sendo uma forma de reconhecer a relatividade da personalidade jurídica das sociedades.

Para que serve a desconsideração da personalidade jurídica?

“Como se sabe, a desconsideração da personalidade jurídica, derivada da disregard doctrine, consiste no afastamento temporário, ocasional e excepcional da personalidade jurídica da sociedade empresarial, a fim de permitir, em caso de abuso ou de manipulação fraudulenta, que o credor lesado satisfaça, com o patrimônio ...

O que acontece depois da desconsideração da personalidade jurídica?

Após a citação daqueles que serão atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica, eles devem, no prazo de 15 (quinze) dias, se manifestar no processo apresentando a sua defesa e também requerendo a produção das provas que entenderem cabíveis.

Quais são os tipos de desconsideração da personalidade jurídica?

Desconsideração da Personalidade Jurídica: Direta, inversa, indireta e expansiva.