Quais ferramentas são importantes para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero?

A prevenção como ferramenta no combate à violência contra as mulheres

Instituto Sua Ciência | 15/05/2022

Quais ferramentas são importantes para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero?

A Ana Luisa Hickmann é antropóloga, mestre em Estudos Latino-Americanos, Promotora Legal Popular, ativista, divulgadora científica e criadora do Projeto Ana Mete a Colher que visa prevenir e enfrentar a violência contra as mulheres através da informação.

O problema da violência contra as mulheres vem sendo debatido com mais afinco ao longo das décadas, o que vem aprimorando a criação de leis, tratados e políticas públicas voltadas à proteção da mulher. Avançamos muito, porém há um longo caminho para percorrer.

De acordo com o Mapa da Violência, cerca de 35% das mulheres já sofreram alguma forma de violência física ou sexual. E não precisamos ir muito longe para detectarmos que vivemos uma verdadeira pandemia de violência de gênero: basta olharmos à nossa volta, questionarmos nossas colegas, amigas, irmãs, parceiras sobre as violências que estas sofreram. Os números seguem assustadores. 

E como podemos mudar isso? A partir de ações concretas. Um exemplo disso foi a criação da Lei 11.340, também conhecida como Lei Maria da Penha, considerada uma das melhores a nível mundial. A Lei é uma importante ferramenta para punir os agressores, mas não somente isso. Além de dispor sobre as formas de violência, as penas para agressores, as medidas protetivas de urgência, a Lei também trata de medidas de prevenção. Podemos citar, entre elas:


V –a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres. (Lei 11.340/2006) 

E ainda,

IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

A prevenção já se provou uma grande aliada no combate à violência que atinge as mulheres, sobretudo através da educação. Aulas, capacitações, a inserção do tema no currículo escolar e nos debates dentro de empresas privadas, além da disseminação de conteúdos sobre a violência de gênero na internet podem ser a chave para que, aos poucos, haja a mudança estrutural que necessitamos para enfrentar o problema.

Temos que nos reconhecerenquanto agentes no enfrentamento à violência contra as mulheres. O silêncio não pode se tornar um aliado do agressor. Se faz necessário, mais do que nunca, meter a colher em briga de marido e mulher. É preciso atentar-se para o fato de que, somente a partir da educação, da mudança de pensamentos e consequentemente de comportamentos, caminharemos para uma sociedade mais justae igualitária para todas e todos.

|Referências

BRASIL. Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006. 

Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Mapa da Violência – Homicídio de Mulheres no Brasil. 2015.

|Sobre a autora

Ana Luisa Hickmann, antropóloga, mestre em Estudos Latino-Americanos, Promotora Legal Popular, ativista, divulgadora científica e criadora do Projeto Ana Mete a Colher que visa prevenir e enfrentar a violência contra as mulheres através da informação.


A primeira vez que as meninas foram autorizadas a frequentar escolas no Brasil foi em 1827, a partir da Lei Geral. Ela determinava que, nas “escolas de primeiras letras” do Império, meninos e meninas estudassem separados e tivessem currículos diferentes. Os garotos estudavam, por exemplo, mais matemática que as meninas. Enquanto elas não podiam estudar nada além das quatro operações básicas.

Hoje, 194 anos após a implementação da  primeira grande lei educacional do Brasil, meninas têm mais acesso à educação, mas ainda são vítimas de discriminação e violência, segundo um estudo feito pela Plan International, pelo Unicef e pela ONU Mulheres. A pesquisa analisa como o mundo evoluiu quanto à igualdade de gênero nos últimos 25 anos.

De acordo com o estudo, o número de meninas analfabetas no mundo, com idade entre 15 e 24 anos, caiu de 100 milhões, em 1998, para 56 milhões entre 1995 e 2018. O maior acesso à educação não garantiu, entretanto, que mulheres sofressem menos violência.  Cerca de 1,23 milhão de mulheres foram atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS) vítimas de violência entre 2010 e 2017. E o agressor era, em 90% dos casos, uma pessoa próxima da vítima — 36% das vezes, o próprio parceiro, segundo dados do do Instituto Igarapé.

Como  a educação pode agir no combate à violência?

Há sete anos a Cientista Social do Centro das Mulheres do Cabo, em Pernambuco, Cássia Jane de Souza trabalha com a temática da igualdade de gênero nas escolas. Para a educadora, que também é Champion do Malala Fund pelo Direito à Educação de Meninas, é fundamental trabalhar a educação com igualdade de gênero para prevenir a violência.

O machismo e o patriarcado perpassam as instituições, e na escola não é diferente. Em uma escola onde não há educação com identidade de gênero, você reproduz o ciclo do pensamento vicioso e violento, da ‘coisificação’ da mulher, que é quando o homem pensa que a mulher é um objeto dele. Quando temos uma educação voltada para a igualdade de gênero nós construímos um mundo melhor, com outras masculinidades, com a mulher como igual”, explica a cientista social.

Quais ferramentas são importantes para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero?
Cássia Jane de Souza é Cientista Social do Centro das Mulheres do Cabo Foto: Arquivo pessoal

A educadora ressalta que há diversas iniciativas independentes, e importantes, que abordam o tema da igualdade de gênero nas escolas como forma de combate à violência contra a mulher, mas ainda são poucas. Alguns estados já ensinam nas escolas o que é a Lei Maria da Penha. É o caso do Mato Grosso do Sul que implementou no ano passado, através da Lei nº 5.539, a inclusão do Ensino de Noções Básicas da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), como conteúdo transversal nas escolas públicas estaduais do Estado. Em outros estados, como na Paraíba, por exemplo, a lei nunca saiu do papel.

“Em Pernambuco, nós do Capítulo Brasil da Rede de ativistas do Fundo Malala executamos uma ação, apoiada pelo Fundo, que trabalha o direito à educação de qualidade e o acesso e permanência das meninas nas escolas dando enfrentamento à evasão escolar, fortalecendo essas meninas, gestores, professoras e professores para construir uma educação com foco na igualdade de gênero”, explica.

Faltam dados sobre o papel da educação no combate à violência contra a mulher

A cartilha “Maria da Penha vai à escola”, desenvolvida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, que aborda a educação como forma de prevenção e coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher, é destacada pela educadora como uma das ferramentas que pode ser utilizada nas escolas para falar sobre a temática. Mas, segundo Cássia, ainda são poucas as pesquisas sobre o assunto.

Não há dados específicos sobre igualdade de gênero na educação e enfrentamento da violência contra mulher. Nós do Centro das Mulheres do Cabo estamos fazendo uma pesquisa sobre, mas ainda não terminamos por conta da pandemia. Desde 2016 encontramos uma certa dificuldade para desenvolver pesquisas relacionadas a esta temática. Os planos municipais e estaduais de educação enfrentam dificuldades para serem colocados em prática nas escolas, mas eles são muito importantes para prevenir a violência contra a mulher. Dados específicos não tem. O que há são alguns artigos sobre o tema, mas pesquisas específicas não tem, por isso nós do Fundo Malala estamos construindo este levantamento”, diz.

Dentro da sala de aula

Para Mariana Reis, professora do Instituto Benjamin Constant, uma tradicional instituição de ensino para deficientes visuais no Rio de Janeiro, o tema da violência contra às mulheres deve ser abordado nas escolas a partir dos elementos cotidianos, que diferem menino e menina na sala de aula, até chegar em assuntos mais polêmicos: “Não existe um modelo ideal para se abordar este tema na sala de aula, mas tem que ser se partir do cotidiano das próprias crianças. Podemos questioná-las, por exemplo, o porquê de ter uma fila de menino e outra menina, ou ainda, o motivo pelo qual meninos não deixam as meninas jogarem futebol, por que as merendeiras das meninas são rosas e dos meninos azuis. Levantar esses debates e questionar o cotidiano deles é fundamental para que eles percebam desde pequeno essas desigualdades”, explica a professora.

Quais ferramentas são importantes para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero?
Mariana Reis é professora da rede pública há 10 anos. Foto: Arquivo Pessoal

A educadora pontua ainda que ao entender essas diferenças forjadas na sociedade desde a infância, as crianças crescem percebendo abismos sociais ainda maiores relacionados à questão de gênero: “Eles entenderão futuramente, por exemplo, a questão da desigualdade salarial no mercado de trabalho e perceberão que precisam ser diferentes. Também terão uma noção mais ampla dos espaços, não naturalizando a mulher como ‘da casa’. Trazendo todos esses elementos você consegue entrar no tema ‘violência à mulher’ explicando que já existe uma naturalização das desigualdades entre homem e mulher para, por fim, dizer que o homem não deve ter esse sentimento de posse a ponto de agredir uma mulher. Com as crianças, temos que começar nos elementos cotidianos que diferem menino e menina na sala de aula, até chegar em assuntos mais polêmicos”, explica Mariana.

Recorte Racial

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2018 e 61% delas eram negras (soma de pretas e pardas, de acordo com classificação do IBGE). Feminicídio é o termo que define o assassinato de mulheres cometido em razão do gênero. Ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher.

Para  a Defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU, Kenia Maria, é preciso que a educação das crianças esteja associada a uma reeducação dos homens: “A gente precisa falar com os nossos homens, para que eles entendam a importância da mulher na sociedade. No processo de educação das nossas crianças o gênero não deve ser pautado como ‘quem lava a louça, quem cuida’, esses papéis são de todos”, explica Kenia que também é atriz e escritora.  

Quais ferramentas são importantes para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero?
Kenia Maria é Defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU, atriz e escritora. Foto: Arquivo pessoal

A Defensora da ONU ressalta ainda a importância de se pautar ‘raça’ quando o assunto é educação e violência contra a mulher. Afinal, as mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica no Brasil e estão na base da pirâmide social por sofrerem duplo preconceito, o de raça e o de gênero:“ Vamos precisar do feminismo negro, que vem relembrar aos homens a importância da voz feminina negra. Precisamos reeducá-los. Também é preciso um trabalho de desintoxicação dos nossos jovens. Precisamos aplicar uma pedagogia, uma tecnologia de sobrevivência visando raça em primeiro lugar”, comenta Kenia.

Educação Pluriversal

A professora, pesquisadora e pós-doutora em Filosofia Africana, Aza Njeri destaca a educação pluriversal como um caminho para uma formação mais consciente das crianças, rompendo assim, com o ciclo da violência no futuro.

Quais ferramentas são importantes para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero?
Aza Njeri é professora, pesquisadora e é doutora em Literaturas Africanas epós-doutora em Filosofia Africana

“Uma educação dita ‘universal’ tem de viés eurocêntrico e ainda colonizador. E essa colonização considera , por exemplo, a descoberta da América. Ou seja, ela parte da experiência de um sujeito único, da narrativa única, contada por um único ator, para usar essa mesma narrativa como experiência para todos. Ela vai contar o fato histórico da chegada dos europeus na América a partir do viés do descobrimento, e não do genocídio. Esse viés é, na maioria das vezes, patriarcal e colonizador. A educação pluriversal é alinhada a uma série de intelectuais, inclusive tem influência na educação libertadora de Paulo Freire, mas também se alinha ao conceito de pluriversalidade de Mogobe Ramose, é um filósofo sul-africano, um dos principais pensadores a popularizar a filosofia africana, e especificamente a filosofia Ubuntu“, explica a professora.

A pesquisadora acredita que humanizar as relações desde a infância é essencial para romper com os futuros ciclos de agressão: “Nas mulheres essa educação vai humanizar as relações. A criança desde o início da idade escolar estará em contato com o viés humanizador das meninas, dos meninos, e isso é construído através da filosofia do Ubuntu, que é uma filosofia bantu-africana , baseada no “eu sou pq nós somos”. Por que a minha humanidade se torna mais humana a partir do momento que eu reconheço a sua”.

Como evitar a violência de gênero?

Não consuma pornografia infantil. Divulgue informações de como identificar e prevenir violência contra a mulher nas suas redes. Participe de reuniões e eventos promovidos por organizações de enfrentamento a violência baseada em gênero. Muitas entidades públicas e da sociedade mantêm esses espaços.

Quais são os mecanismos utilizados para prevenir a violência de gênero em âmbito global?

Nesse sentido, as Instituições de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, a Lei Maria da Penha e as Delegacias de Defesa da Mulher são exemplos dos mecanismos utilizados para dar visibilidade ao problema da violência de gênero e para legalizar os suplícios e os protestos das vítimas, evitando assim a ...

O que pode ser feito para diminuir a violência?

"Tem que investir na polícia do ponto de vista de prevenção, em inteligência, investigação, no sentido de prevenir a violência”, explica. Em paralelo a isso, Lotin defende o investimento nas áreas sociais – educação, saúde, saneamento, moradia, trabalho – para colaborar no combate à criminalidade.