Qual é a importância da laicidade na Constituição brasileira?

INTRODUÇÃO

A efetividade do princípio da laicidade, instituído na Constituição Federal de 1988, é um tema de necessária discussão, considerando o atual sistema político brasileiro, a diversidade religiosa e a representatividade das religiões no Congresso Nacional.Com base neste tema, algumas dúvidas foram levantadas, dentre elas, aquela que originou a presente pesquisa: Como se dá, no Brasil, a efetivação do princípio da laicidade?

Segundo a ideia da laicidade, Estado e religião devem ser separados, de maneira que os segmentos religiosos não possam interferir nas decisões estatais. Tal tema ganhou ênfase com a Revolução Francesa entre os anos de 1789 a 1799, tornando-se, ainda na atualidade, uma referência para os Estados. Vários países consideram-se oficialmente laicos e não possuem uma religião oficial. Estes buscam prezar pela isonomia dos cidadãos, garantir a liberdade de crença e afastar a interferência de grupos religiosos nas decisões políticas.

Este seguimento enquadra-se bem no Estado democrático de direito, uma vez que um de seus objetivos é proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, com base em leis criadas por representantes eleitos pelo povo, sem quaisquer discriminações negativas, dentre elas, a religiosa. Assim, defende-se o respeito à liberdade de escolha, e de vida dos cidadãos, garantindo aos mesmos seus direitos fundamentais. Neste modelo de Estado a laicidade é necessária, bem como naqueles Estados liberais que, sob a perspectiva de Norberto Bobbio (1987) são também laicos, posto que não se identificam com uma determinada confissão religiosa.

Quanto ao Brasil, o Estado é laico desde 1890, através do Decreto 119-A de Ruy Barbosa, por meio do qual foi determinada a separação entre Estado e Igreja e a liberdade religiosa. As Constituições que se seguiram adotaram o princípio da laicidade. Por exemplo, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891) vedou aos estados e a União estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício religioso, e determinou que não haveria relações de dependência ou aliança com o governo. A Constituição seguinte (1934)trouxe também mudanças, dentre estas, garantiu a liberdade de culto e o reconhecimento de personalidade jurídica das associações religiosas. Quanto a Carta Magna de 1937, esta manteve os ditames anteriores, todavia não tratou a respeito da personalidade jurídica das associações religiosas, prevendo a igualdade perante a lei. Já no ano de 1946 uma nova Constituição reconheceu a imunidade tributária dos templos religiosos, o descanso remunerado em feriados religiosos e a possibilidade de reconhecimento dos efeitos civis do casamento religioso. E, ainda, a nossa quinta Constituição (1967) adotou o princípio da laicidade e inovou com a possibilidade de colaboração entre Estados e religiões quando houvesse interesse público (BERTOLO, 2017).Por fim, com a Constituição de 1988, o Estado Brasileiro continua oficialmente laico, tendo em vista que garante, no inc. VI do art. 5° da Carta Magna a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, bem como no art. 19 estipula a separação entre o Estado e a religião.

Todavia, o Brasil é marcado por um vasto território, além da grande diversidade cultural e ideológica. Um reflexo da pluralidade religiosa no país, é o envolvimento de algumas entidades religiosas com a política, a fim defender suas crenças neste âmbito do Estado. Dessa forma, o presente artigo tem por o objetivo geral verificar como se dá a efetivação do princípio da laicidade no Brasil. E, por objetivos específicos:(a) apontar as características de um Estado laico, (b) discutir a diversidade religiosa no Brasil, e(c) averiguar a influência das religiões na política brasileira.

O método utilizado é o dialético, uma vez que visa discutir o tema considerando os fatos dentro do meio social, abordando diversos pontos, a fim de discutir o assunto por meio de argumentos fundamentados. Segundo Marconi e Lakatos(2003) para a dialética, as coisas não são analisadas na qualidade de objetos fixos, mas em movimento. Visando levantar discussões quanto aos diversos aspectos do tema abordado, não visa encontrar um “fim”, mas iniciar diversos debates dentro do tema. Utilizando a abordagem qualitativa, para coletar e analisar informações subjetivas, quanto ao tema.

A diversidade de métodos na abordagem qualitativa permite que o autor explore o tema, sem limites predefinidos, seu único limite é sua capacidade em explorar o tema escolhido. Nas palavras de Gil(2008), ao contrário do que ocorre nas pesquisas experimentais e levantamentos em que os procedimentos analíticos podem ser definidos previamente, não há fórmulas ou receitas predefinidas para orientar os pesquisadores. Assim, a análise dos dados na pesquisa qualitativa passa a depender muito da capacidade e do estilo do pesquisador. Assim, para a utilização da pesquisa qualitativa, faz-se necessário explorar bem o tema abordado, para coletar as informações subjetivas que o envolve. A pesquisa empregada será a descritiva, visando descrever o problema e suas características. Possui como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis. (GIL, 2008)

Serão realizados estudos em busca de observar as características da sociedade, por meio de pesquisas teóricas e jurisprudenciais necessárias, descrevendo os principais pontos, para o desenvolvimento do tema abordado. Utilizando-se da técnica secundária, por meio de interpretação de dados primários. A coleta de dados será realizada a partir de publicações referentes ao tema, tudo o que dele se sabe e tem publicado, do judiciário a mídia, todas as fontes poderão ser utilizadas, para que haja um contato direto com o tema e seus diversos aspectos. Para tanto, será utilizada a técnica de análise de dados no presente trabalho é a análise de conteúdo, a partir de estudos a respeito de tudo o que foi coletado. Segundo Bardin (2011, p.15), a análise do conteúdo é um conjunto de instrumentos de cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a discursos extremamente diversificados.

Esta pesquisa justifica-se socialmente uma vez que, em um Estado democrático de direito, a soberania decorre do povo, sendo de suma importância a obediência a Constituição, uma vez que esta representa a vontade do povo, e foi desenvolvida para garantir os seus direitos. No entanto, o Estado brasileiro, que possui o princípio da laicidade instituído na Constituição de 1988, permanece envolvido com a religião. Tal envolvimento pode representar um risco a democracia do país, e ao direito de liberdade do povo, o que nos leva a necessidade de verificar a efetivação do princípio da laicidade no Brasil.

É necessária a discussão abordada neste trabalho, que visa trazer grandes contribuições para o meio social e acadêmico, abrindo caminhos para o avanço da democracia e a garantia dos direitos erigidos na Constituição, fortalecendo o poder da população e seu direito fundamental à liberdade de religião, bem como firmando as bases de um Estado democrático que deve seguir a Constituição, efetivando o princípio da laicidade.

Trará um vasto ganho acadêmico, por tratar-se de um trabalho que visa discutir o tema Estado e religião, tendo em vista o princípio da laicidade elencado na Constituição Federal e a forma por meio da qual se dá sua efetivação no Estado brasileiro. Como ganho social, abre os caminhos para a verificação de como se dá a efetivação do princípio da laicidade previsto na Carta Magna, sob a ótica do Estado democrático de direito.

  1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

         CARACTERÍSTICAS DE ESTADO

              ESTADO LAICO NAHISTÓRIA

A Revolução Francesa buscou tornar o Estado independente do Clero Católico, pelo princípio da soberania do povo, aplicando o laicismo de maneira radical. Tratava-se, dentre outros pleitos, de uma por um Estudo anti-religião, conforme explana Valentine Zuber (2010). Ainda segundo o autor, nas eleições de 1879, com a vitória dos republicanos, a laicização ganhou espaço no Estado francês com a criação de leis fundamentais, entretanto, os conflitos com o Clero persistiram, até uma total ruptura, tornando possível a separação de fato entre Estado e religião.

Os dois artigos que estabelecem os princípios maiores são o 1.º, «A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos, apenas mediante as restrições estatuídas adiante no interesse da ordem pública» e o 2.º, «A República não reconhece, nem assalaria nem subsidia qualquer culto». (ZUBER, 2010)

Após várias mudanças causadas pelo princípio da laicidade, em 1905 a França se tornou um país oficialmente laico, permitindo a liberdade filosófica e religiosa. Sob estes pilares, o laicismo passou a ser fundamental para a liberdade dos cidadãos e a garantia dos direitos humanos, estando o poder do Estado limitado em benefício do povo, devendo tratar todos de maneira igual, independente de crença. O que destaca, também, o princípio da isonomia pelo qual todos devem ser tratados de

maneira igual perante a lei. Esses dois princípios andam lado a lado. A laicidade passou a ser adotada em vários países, em graus diferenciados, haja vista os Estados possuírem histórias e crenças de maior influência. Assim, há Estados que garantem a liberdade religiosa de seus cidadãos, mas possuem uma religião estatal, adotam o regime de religião de Estado; outros adotam a separação igreja-Estado, mas com particularidades em relação a uma religião ou a um grupo de religiões; e há aqueles, que visam maior liberdade dos cidadãos e o exercício amplo da democracia, que possuem de fato o regime de separação, entre igreja-Estado. (ORO, 2011)

Ainda, segundo Ari Pedro Oro (2011), a América Latina possui onze países que adotam o regime de separação igreja-Estado: México, Haiti, Honduras, Nicarágua, Cuba, Colômbia, Venezuela, Equador, Chile, Uruguai e Brasil. Este último, recebendo ao longo de sua história uma formulação própria. A propósito, no Brasil, embora na Constituição Imperial (1824) estivessem previstas mudanças quanto à liberdade religiosa, esta última só foi imposta (com a separação entre Estado e religião) na Constituição Republicana de 1890, quando o Brasil se tornou oficialmente um país laico. Ainda assim, diante a profunda influência da Igreja Católica na origem do país e no decorrer da sua história, a mesma continuou a ocupar um espaço significante no Estado.

ESTADO INSTITUÍDO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

A Constituição de 1988 trouxe inúmeras mudanças para o Estado Brasileiro. Conhecida como “Constituição Cidadã”, esta declarou os direitos dos cidadãos em um Estado democrático, após longo período ditatorial. O envolvimento da religião com o Estado foi um ponto marcante, na ditadura militar brasileira. Segundo Marcelo Ridenti (1993), se é verdade que a alta hierarquia da Igreja Católica deu apoio ao golpe de 1964, também é sabida a crescente resistência de religiosos e sua consequente ligação com as lutas das esquerdas brasileiras.

Reconhecido o Estado democrático de direito, a Carta Magna no art. 5°, inc. VI declarou a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e mais adiante, no art. 19, estipula a separação entre o Estado e a religião, assim, garante um Estado Laico. Segundo Paulo Ceseare (2012), o Estado laico é aquele que não adota uma religião oficial, de modo a não haver envolvimento entre os assuntos do Clero e do Estado, muito menos sujeição. O fundamento de um Estado laico é garantir a liberdade de crença, sem sofrer qualquer repressão ou favorecimento do ente estatal, que não deve possuir uma religião única, mas proteger o direito e a livre manifestação de todas, sem que influencie nas decisões governamentais, que deve visar um bem comum a todas. Neste sentido, descreve Antonio Flávio Pierucci:

Um Estado laico é importante não apenas para as pessoas que não têm religião, mas principalmente para aquelas que têm religião e que, no Brasil, são cada vez mais diversificadas na definição de sua confissão, de sua adesão religiosa. Diversidade religiosa legítima, diferenciação ativa de crenças, tradições, dogmas e práticas, bem como de figuras e entidades religiosas (santos, santas, anjos, demônios, deuses e deusas), só é possível haver de forma sustentável se o Estado for laico. (PIERUCCI, 2006, p. 05).

Pelo exposto, é possível afirmar que uma das principais características de um Estado Laico é a separação entre religião e Estado, em razão da qual o Estado não pode prejudicar nem beneficiar uma única religião ou um grupo delas, nem permitir ser influenciado diretamente pela religião. Aos nossos olhos, o Estado laico é indispensável para a liberdade religiosa, sobretudo em países como o Brasil, em que são várias as religiões com princípios e ideologias dessemelhantes.

DIVERSIDADE RELIGIOSA NO BRASIL

A sociedade brasileira é diversificada, tendo em vista, dentre outros fatores, o seu longo território, as mudanças entre Estados e regiões e o alto índice de imigração. Também nos parece evidente que a nossa cultura tem sofrido, ao longo da história, modificações significativas. Esta é uma afirmação que segue o entendimento que Alexandre Barballho, senão, vejamos:

Em primeiro lugar, pelo tamanho continental do país e o processo histórico de sua ocupação que envolveu não apenas o colonizador português, mas diversas etnias indígenas e africanas, afora outros migrantes europeus e os asiáticos, além dos fortes fluxos migratórios internos. (BARBALHO, 2007,p. 01)

Uma breve análise histórica permite afirmar que cada novo povo que chegava ao Brasil trazia consigo não apenas sua cultura, mas também sua religião. Um   exemplo  pode  ser   encontrado  no  período  colonial,  no  qual   os   africanos

escravizados eram forçadamente batizados e obrigados a proferir a fé católica. Mas, ainda assim, e apesar dos castigos que podiam sofrer, escondiam seus deuses e objetos de sua adoração nas imagens de santos católicos, e não deixavam de proferir sua fé.

O Brasil durante o período colonial e imperial (1500-1889) tinha o catolicismo como única religião legalmente aceita. Neste longo período, a Igreja dominava, não se admitia liberdade religiosa, nem separação com o Estado. Ao decorrer dos anos, entretanto, muitos imigrantes chegaram às terras brasileiras, e religiões foram se formando na sociedade, chegando essas a sofrer perseguições, mesmo após a Constituição Republicana, tendo em vista que o catolicismo ainda exercia influência sobre o Estado. Na Constituição de 1934, foi introduzido o princípio da “colaboração recíproca” entre Estado e Religião (igreja Católica). Segundo Ari Pedro Oro (2011), neste período (Estado Novo) outras religiões, como o espiritismo, e principalmente as religiões afro-brasileiras foram tratadas com repressões policiais e invasões de terreiros.

O censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), levanta, além de “outras declarações de religiosidades afro- brasileiras”, “outras religiões orientais”, “outras religiosidades”, “outras religiosidades cristãs”, “não sabe”, “não determinada e múltiplo pertencimento”, “novas religiões orientais”, “evangélicas” e “sem religião”, 16 (dezesseis) religiões. Apenas entre as religiões evangélicas, entre Pentecostais e Missionárias, fora as “outras” e “não determinadas”, há 17 (dezessete) segmentos diferentes. A Católica Apostólica Romana é a que possui maior número de adeptos, e em segundo lugar as religiões evangélicas. Ainda sobre estas denominações vale citar:

Existem muitas denominações cristãs no Brasil: há igrejas protestantes, pentecostais, episcopais, metodistas, luteranas e batistas. Temos também mais de um milhão e meio de espíritas ou kardecistas que seguem a doutrina de Allan Kardec. Existem ainda os seguidores da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, uma minoria de judeus, muçulmanos, budistas, neopagãos e seguidores do Candomblé e da Umbanda (DOMTOTAL, 2011, p.02).

Como visto, as terras brasileiras possuem imensa diversidade, o que não é diferente quanto às religiões, possuindo, entre a sociedade Cristã, segmentos e denominações distintas, evangélicas, católicas e cristãs, com doutrinas próprias. Há também as religiões de origem africana, que permanecem até os atuais dias, como a Umbanda e o Candomblé. Outro marco da história e das origens do território brasileiro são as tradições indígenas.

A Constituição de 1988, assim, instituiu entre os direitos fundamentais, a liberdade de crença, permanecendo um Estado laico. Cabe ao Estado Democrático de Direito garantir a liberdade dessas religiões e seu livre exercício sem qualquer interferência do Estado, ou de qualquer outro cidadão, conforme estipulado na Carta Maior. Cabe ao Estado, portanto, não se deixar influenciar pelas religiões, para que possa, assim, garantir o direito de todas. Contudo, este dever do Estado e direito fundamental dos cidadãos, por vezes, torna-se objeto de casos jurídicos de grande repercussão, nos quais são levantadas questões quanto à liberdade de religião e a atuação do ente estatal. O art. 5° da Carta Magna dispõe que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, 1988)

O constituinte originário ao dispor que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, assegura que, apesar das diferenças, seja ela de cor, ideologia, crença, filosófica e etc., todos serão tratados da mesma forma diante o Estado. Tal disposição faz referência direita ao princípio da isonomia, mas também ao princípio da laicidade, uma vez que garante que independente de religião todos serão tratados de forma igual perante a lei.

Assim, o art. 5º da Carta Magna trata dos direitos fundamentais, aqueles que todo cidadão possui e que não pode lhe ser negado, descreve Vera Karam De Chueiri (2009) que os direitos individuais têm por base a liberdade e a igualdade e representam uma zona de autodomínio na qual o Estado não deve intervir se não para protegê-los e garanti-los. Dentre os direitos individuais fundamentais, a Carta Maior garante a liberdade religiosa, de crença, e sua inviolabilidade, e livre exercício, garantindo inclusive proteção aos locais de exercício religiosos. Senão, vejamos:

É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (BRASIL, 1988, art. 5, inc. VI)

OBSTÁCULOS A LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL

Em razão das diferentes práticas religiosas existentes, surge uma lacuna quanto aos limites desta liberdade, até que ponto ela pode ser exercida e é protegida pelo Estado. Uma vez que a lei não sana tal questão, essas discussões são levadas, por vezes, aquele que é o guardião da Constituição Federal nos termos do art. 102 da mesma, qual seja, o Supremo Tribunal Federal.

Assim, em 19 de novembro de 2019 o STF julgou um caso de repercussão geral que versava sobre a constitucionalidade, diante o princípio da laicidade, da Lei estadual de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPE-RS) interpôs contra decisão do Tribunal de Justiça do estado (TJ-RS) que declarou a constitucionalidade da Lei estadual 12.131/2004 que autoriza sacrifícios de animais em rituais religiosos, Recurso Extraordinário (RE) nº 494601.A presente discussão surgiu em torno do direito do meio ambiente e o direito à liberdade religiosa. Podem as religiões de matriz africana descumprir lei de proteção ambiental? Podem ter privilégio, e ser permitido às mesmas o sacrifício de animais? A proibição de rituais religiosos com sacrifício de animais afronta o princípio da laicidade? E a liberação para um único grupo de religiões, também afronta? Essas questões foram julgadas a partir da interpretação da Constituição Federal pela maior instância do poder judiciário. Vejamos a jurisprudência:

Ementa:           DIREITO           CONSTITUCIONAL.         RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. LIBERDADE RELIGIOSA. LEI 11.915/2003 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. NORMA QUE DISPÕE SOBRE O SACRIFÍCIO RITUAL EM CULTOS E LITURGIAS DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS ESTADOS PARA LEGISLAR SOBRE FLORESTAS, CAÇA, PESCA, FAUNA, CONSERVAÇÃO DA NATUREZA, DEFESA DO SOLO E DOS RECURSOS NATURAIS, PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E CONTROLE DA POLUIÇÃO. SACRIFÍCIO    DE    ANIMAIS    DE    ACORDO    COM  PRECEITOS

RELIGIOSOS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Norma estadual  que institui Código de Proteção aos Animais sem dispor sobre hipóteses de exclusão de crime amoldam-se à competência concorrente dos Estados para legislar sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art.  24, VI,  da CRFB). 2. A prática e os rituais relacionados ao sacrifício animal são patrimônio cultural imaterial e constituem os modos de criar, fazer e viver de diversas comunidades religiosas, particularmente das que vivenciam a liberdade religiosa a partir de práticas não institucionais. 3. A dimensão comunitária da liberdade religiosa é digna de proteção constitucional e não atenta contra o princípio da laicidade. 4. O sentido de laicidade empregado no texto constitucional destina-se a afastar a invocação de motivos religiosos no espaço público como justificativa para a imposição de obrigações. A validade de justificações públicas não é compatível com dogmas religiosos. 5. A proteção específica dos cultos de religiões de matriz africana é compatível com o princípio da igualdade, uma vez  que sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural, está a merecer especial atenção do Estado. 6. Tese fixada: “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”. 7. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal.  Tribunal Pleno. Recurso Extraordinário nº 494601 / RS -RIO GRANDE DO SUL. RECTE.(S): Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, RECDO.(A/S): Governador do Estado do Rio Grande do Sul, RECDO.(A/S): Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN. Julgamento: 28/03/2019. Pesquisa de jurisprudência STF. Praça dos Três Poderes - Brasília – DF, Publicação em 19.11.2019). (grifo nosso)

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul alegou que,somente pode ser considerada legítima e legal a manifestação religiosa ou cultural que não ofender o princípio da vedação da crueldade contra animais, alegando ainda que o Estado não detém competência para legislar sobre matéria penal, destacando que um ato não pode ser impedido e permitido ao mesmo tempo, e que a lei estadual afronta o princípio da isonomia uma vez que cita as religiões de “matriz africana”, atribuindo a esta um privilégio, que vai de encontro com a natureza laica do Estado. (BRASIL, 2019, RE 494601)

No julgado o Relator Ministro Edson Fachin levantou cinco pontos importantes para negar provimento ao recurso, primeiro deles, a legitimidade do Estado de legislar sobre a proteção do meio ambiente, sem dispor de exclusão de crime, uma vez que possui competência concorrete nos termos do art. 24, inc. VI da Constituição Federal. Logo, compreende-se que a permição de rituais de sacrfício animal pelas religiões da matriz africana, não trata-se de exclusão de crime, sendo, por tanto, o Estado competente para legislar sobre o tema.

Nos pontos dois e três da Decisão encontramos as razões pelas quais as disposições da Lei Estadual objeto do recurso não dizem respeito a exclusão de crime, pois, conforme explana o relator, os rituais com sacrifícios de animais são patrimônio cultural imaterial de comunidades religiosas que exercem a liberdade religiosa a partir de práticas não instituicionais, liberdade esta que possui proteção constitucional, e por tanto, não trata-se de crime, nem afronta ao princípio da laicidade.

O Ministro, ainda destaca a adequação ao princípio da igualdade e da laicidade no presente caso, explicando que o a laicidade na Constituição federal destina-se a afastar a invocação da religiosidade no espaço público, não sendo compatível as justificações públicas com dogmas religiosos, e que em razão do princípio da igualdade, haja vista o preconceito sofrido pelas religiões da matriz africana, esta merece atenção especial do Estado. Assim, é possível compreender que tal lei estadual efetiva o princípio da laicidade quanto a liberdade religiosa e o princípio da igualdade, uma vez que, assim como outras religiõs, as de matriz africana devem possuir o seu direito a liberdade de crença.

De tal modo, o Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, julgou constitucional a lei objeto da ação, sob argumento de que o Estado legislou dentro de sua competência, e que a liberdade religiosa da matriz africana é digna de proteção, conforme o princípio da igualdade, não ferindo o princípio da laicidade. Nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso (2019):

A ideia de laicidade significa a separação formal entre Igreja e Estado e significa o que se diz ser a neutralidade estatal em relação a qualquer religião. Por que creio que a referência apenas às religiões de matriz africana não é privilégio neste caso? Porque, aqui, não se trata de dar um privilégio, mas, ao contrário, de assegurar os mesmos direitos que eram e sempre foram assegurados às outras religiões. De modo que proteger a liberdade de culto de uma comunidade religiosa específica é assegurar a liberdade religiosa, e não quebrar a laicidade do Estado.

Assim, podemos concluir que, no presente caso, a Lei em questão, por citar apenas a matriz africana, não está beneficiando a mesma, mas garantindo a esta seu direito de livre exercício de crença, e de igualdade com as demais religiões que proferem sua fé sem restrições. Neste diapasão, restou firmada a tese de constitucionalidade da lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.

A questão das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul não é um caso isolado, muitas religiões e cidadãos no Brasil enfrentam problemas similares, tendo suas práticas questionadas, e postas em choque com outros princípios e leis, como que superiores a liberdade religiosa, filosófica e política. São exemplos as discussões quanto à guarda Sabática das religiões Adventista do Sétimo Dia, e algumas do segmento Judaico; a liberdade religiosa e a integridade física com relação às Testemunhas de Jeová; e as discussões quanto à imunidade tributária religiosa, a liberdade religiosa do âmbito do trabalho, e a expressão “Deus seja louvado”, nas cédulas de real.

A religião Adventista do sétimo dia, e algumas do segmento judaico, possuem a prática religiosa da guarda sabática de acordo com a qual não é permitido no dia de sábado ou do pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado, realizar qualquer atividade para benefício próprio, o que inclui assistir aula, trabalhar, realizar exames, provas, vestibulares etc. Logo surgem algumas questões, em principal com referência a aulas e provas realizadas no período da guarda sabática, frente a ausência de legislação quanto ao tema, surge um conflito entre o direito de livre exercício de consciência e de crença e o direito a educação.

Com referência a religião cristã conhecida por Testemunhas de Jeová, a mesma segue o princípio bíblico de abstinência de sangue, assim, não apenas não consomem sangue, como algumas religiões evangélicas, mas também não doam nem recebem sangue. Apesar de haver alternativas diversas a transfusão de sangue para a maioria dos tratamentos médicos, que são aceitos pela religião, ainda surge alguns conflitos quando, por exemplo, o hospital não dispõe de tratamento diverso a transfusão ou a transfusão é medida emergencial e essencial para manter a vida física do paciente. Daí, apesar de a Constituição Federal assegurar a liberdade de crença e de consciência, nasce o conflito entre a liberdade religiosa e o direito a integridade física.

Ambos os casos já foram objeto de várias ações no judiciário brasileiro, por meio das quais os autores tentam alcançar a efetividade do direito de livre consciência e de crença garantidos na Constituição Federal, haja vista que vivemos em um país laico. No RE 1212272 de repercussão geral, que teve como Relator o Ministro Gilmar Mendes, interposto com fundamento art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, apontando violação aos arts. 1º, III, 5º, caput, II, VI, VIII e art. 196 do texto constitucional, a pretensão autoral era a realização de cirurgia cardíaca pelo Sistema Único de Saúde, com a não utilização de sangue, caso fosse necessário, mas de alternativas diversas, todavia, o Supremo entendeu que a prestação de serviço público diferenciado as Testemunhas de Jeová feriria o princípio da isonomia, tratando-se de uma questão, não religiosa, mas de técnicas médicas do SUS, na decisão foram citadas algumas jurisprudências, conforme a que segue:

Daí que a liberdade de religião garantida a todos pela Constituição da república não assegura o direito da pessoa humana de exigir do estado prestação diferenciada no serviço público para atender as regras e as práticas da fé que professa. Recurso negado. (Apelação cível nº 70061159398, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Izabel de Azevedo Souza, julgado em 29.08.2014)

Assim, foi negado segmento ao recurso. Ora, tratamento diferenciado pelo Estado para garantir a liberdade religiosa, de consciência e de crença, garantidas pela Carta Magna, não seria uma efetivação do princípio da laicidade? Claramente a questão abordada no Recurso extraordinário nº 1212272 faz referência a preceito garantido pela Constituição da República, uma vez que trata-se de exercício da liberdade religiosa, assim como no caso das matrizes africanas, independente das questões técnicas do caso em apreço, a liberdade de escolha quanto ao tratamento médico em virtude da religiosidade trata-se de exercício da liberdade de crença.

Tramita no Supremo Tribunal Federal desde 2011, Recurso Extraordinário nº 611874 de repercussão geral, que versa a respeito da liberdade religiosa e realização de provas de concurso público. O Tribunal Regional Federal da 1º Região concedeu a ordem requerida por um candidato de concurso público, da religião Adventista do Sétimo Dia, que interpôs mandado de segurança para alterar a data da prova estabelecida no calendário de concurso público, em razão da sua religiosidade que determina guardar o sábado para atividades bíblicas, alegou que a recusa de seu requerimento para alteração da data da prova fere seu direito de liberdade de consciência e crença religiosa, assegurados pela Constituição Federal (artigo 5°, incisos VI e VIII), a União, por sua vez, alega que as atividades administrativas, desenvolvidas com o objetivo de prover os cargos públicos, não podem estar condicionadas às crenças dos interessados.

Ao contrário do caso dos rituais com sacrifícios animais das religiões da matriz africana julgado pela Suprema Corte, com a referência as questões das religiões Adventistas do sétimo dia, algumas do seguimento judaico, e das Testemunhas de Jeová, ainda não há tese firmada pelo Guardião da Constituição, assim tais questões permanecem sem solução, e nelas o direito ao livre exercício da religião não é garantido, resguardado, efetivado, como deveria em um Estado democrático de Direito, sendo frequentemente posto em choque com outros princípios.

Quanto a imunidade tributária religiosa, o Supremo Tribunal Federal decidiu no Recurso extraordinário nº 325822, no ano de 2002, que as entidades religiosas têm direito à imunidade tributária sobre qualquer patrimônio, renda ou serviço relacionado, de forma direta, à sua atividade essencial, mesmo que aluguem seus imóveis ou os mantenham desocupados, com fundamento no art. 150, VI, “b” da Constituição Federal que veda os entes federativos de instituir imposto sobre templos de qualquer culto. Segundo Paulo Caliendo (2017), alguns casos têm chamado a atenção para o conceito de culto para fins de alcance para a imunidade religiosa, como no caso de lojas maçônicas, seitas, seitas satânicas, centros espíritas, santo daime (manifestação religiosa ritualística de uma erva amazônica psicodélica) entre outros. Além das discussões quanto ao conceito de “culto” citado na Carta maior, alguns grupos sociais, em razão dos frequentes abusos a fé popular com uso ilícito das entidades para fins pouco louváveis, e a utilização econômica, defendem a extinção da imunidade religiosa.

No âmbito do trabalho a liberdade religiosa também é um ponto polêmico, frente os princípios elencados na Constituição Federal, como o princípio da laicidade, há a necessidade de garantir aos trabalhadores a liberdade religiosa e o direito de não discriminação por motivos religiosos no local de trabalho, podendo exercer sua religião sem ter que optar entre sua crença ou seu emprego. O Tribunal Superior do Trabalho, em decisão proferida no Recurso de Revista RR-745-84.2011.5.03.0066 determinou a reintegração laboral de uma vigia que foi dispensada em razão de, por motivos religiosos, não poder trabalhar do pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado, a mesma é da religião Adventista e alegou que a condição foi aceita anteriormente pelo empregador, até o mesmo exigir que esta trabalhasse ao sábado, e por ter negado, fora demitida. Para o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG), a trabalhadora foi vítima de discriminação religiosa, e a dispensa foi “arbitrária, ilegal e discriminatória” (Secretaria da Comunicação Social – TST).

De fato, no território nacional há liberdade de consciência e de crença, em razão disto a imensa diversidade religiosa, todavia a efetividade desta liberdade enfrenta alguns problemas, o livre exercício da liberdade religiosa e sua proteção são pontos essenciais em um Estado laico.

 INFLUÊNCIAS DAS RELIGIÕES NA POLÍTICA BRASILEIRA

Nos parece evidente a importância do efetivo cumprimento do princípio da laicidade em um Estado democrático de direito, principalmente naqueles que possuem vasta diversidade religiosa, como o Brasil. No entanto, o mesmo possui um forte marco histórico de envolvimento do Estado com a religião, em especial o catolicismo, como já explanado.

Nos atuais dias, esta relação de Estado e religião passa por despercebida para grande parte da população, no entanto, vem se expandido gradativamente com as demais religiões, principalmente as evangélicas, tornando-se cada vez mais comum o envolvimento do Estado com as entidades religiosas, as quais, por vezes influenciam diretamente nas decisões estatais. Sobre tal fato, relata Bruna Suruagy de Amaral Dantas:

Os atores religiosos, em defesa de suas demandas, penetram no espaço público e atuam no jogo político assim como as instituições políticas intervêm nos  conflitos religiosos e regulam, em certa medida, a vida íntima dos cidadãos. (DANTAS, 2011, p. 22)

No território nacional as religiões foram crescendo gradativamente, destacando-se os segmentos católicos e evangélicos; em razão da influência do primeiro, o segundo por sua vez busca ganhar espaço, principalmente no meio político, para assim, exercer influência sobre o poder estatal.

Partindo deste conceito, chega-se à conclusão de que os líderes religiosos, na tentativa de “vender” as tradições das instituições às quais representavam, precisaram sair da zona de conforto e adentrar em novos mundos, dentre eles, o da política. (PINHEIRO, 2017, p. 74)

Os grupos evangélicos cada vez mais elegem seus representantes, e passam a depositar nesses a esperança de ter seus ideais defendidos pelo Estado, os eleitos carregam este compromisso, representam nos poderes do Estado sua religião, e atuam em favor desta, sob o argumento de seguir a Constituição Federal.

O Congresso Nacional exerce o poder legislativo, nos termos do art. 44 da Constituição Federal. No nosso entender, dentre os três poderes do Estado, é aquele composto de maior representatividade popular, pois, além de eleitos para tal, tem a função de criar e aprovar leis sobre as matérias de competência da União, elaborar emendas constitucionais, leis complementares e ordinárias, e outros atos normativos com força de lei. Ademais, recai ainda sobre este poder a função típica de fiscalizar a área contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, nos termos do art. 70 da Carta Magna. É formado pelo Senado Federal e Câmera de Deputados, ao todo possui 513 deputados federais. Neste órgão de importante função, e de forte atuação do Estado, encontra- se a bancada evangélica, formada por líderes e representantes evangélicos, que representam atualmente 38% do total dos parlamentares (RIBEIRO e LAGO, 2019.).

De fato, no Brasil atual as influências das religiões no governo não se comparam a influência do catolicismo no período colonial e imperial. Todavia, como Estado democrático de direito que garante a liberdade de seus cidadãos, frente às garantias constitucionais e os marcos deixados pela religião no país, a figura do Estado deve ser totalmente separada da religião. Os riscos de influências religiosas no poder estatal são muitos.

Para que o Estado garanta e defenda o direito de todos os cidadãos, considerando a diversidade religiosa no Brasil, e o direito fundamental ao exercício de todas elas de forma a não sofrer qualquer objeção do poder estatal, e ter por este seus direitos resguardados, o mesmo não pode estar sob influência de qualquer religião, deve ser laico, pois apenas assim poderá atender a todas sem distinção. Pelo exposto, importa destacar ao art. 19 inc. I da Lei Maior:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar- lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL, 1988, art. 19, inc. I)

O Estado não deve realizar cultos, ou igrejas, nem auxiliar ou embaraçar seu funcionamento, nem com estes manter relação, seja de dependência ou aliança. O legislador constituinte vedou ao Estado a instrumentalização da religião para os seus interesses, permitindo apenas para o interesse da coletividade. O “interesse público” citado no inciso anteriormente mencionado, não faz referência ao Estado, mas ao povo. (PINHO, 2015)

Uma vez que a Constituição Federal deve ser observada e seguida pelo poder público, respeitando os princípios por ela imposta, aqueles exercem a função do Estado devem seguir o que determina o art. 5° inc. VI e VIII, e o art. 19 da mesma, exercendo o princípio da isonomia e da laicidade. Todavia, no Congresso Nacional, legisladores manifestam suas crenças religiosas através de projetos que possuem a ética e os valores das instituições religiosas que os orientam na atividade parlamentar. Sobre o tema, dispõe Roberto Blancarte:

Os legisladores e funcionários públicos, mesmo que tenham suas crenças pessoais (religiosas ou de outro tipo), não devem nem podem impô-las à população. Legisladores e funcionários devem responder essencialmente ao interesse público, que pode ser distinto de suas crenças pessoais. (BLANCARTE, 2008, p.29)

Em razão da representatividade da bancada evangélica no Congresso Nacional e seu posicionamento conservador sobre temas polêmicos como homossexualidade e aborto, é possível verificar que a mesma se encontra voltada a defender um único grupo social, que compartilha da mesma ideologia. Sobre a criminalização da homofobia, por exemplo, sabe-se que este é um ponto polêmico no Congresso Nacional, e ao decorrer dos anos foram criados projetos de Lei para criminalização da homofobia, como o projeto de Lei da Câmara (PLC) 122, de 2006, que está arquivado no Senado e o Projeto de Lei 7.582/2014, com a mesma proposta, que está parado na Câmara, mesmo sendo um claro problema existente na sociedade brasileira.

Todavia, nenhum dos projetos passou, até este momento, pelas casas legislativas. Atualmente, tramita no Congresso o Projeto de Lei 672 de 2019, que altera a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que trata sobre os crimes de preconceito a cor ou raça, para incluir na referida legislação os crimes de discriminação ou preconceito de orientação sexual e/ou identidade de gênero. A Bancada evangélica é uma resistência ao projeto, vejamos:

Segundo Cavalcante, a bancada evangélica também não vai apoiar o projeto de lei 672/19, aprovado nesta semana na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, estabelecendo ampla criminalização da homofobia.(BBC, 2019)

A omissão do legislativo resultou na instauração de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e um Mandado de Injunção (MI) ao Supremo Tribunal Federal. Os parlamentares, principalmente da Frente Evangélica, tentaram impedir o julgamento pela Corte Maior, sob alegação da mesma não deter a função de legislar, ainda sobre matéria que está em discussão no Congresso Nacional. Como resposta a Suprema Corte, a bancada evangélica criou projeto de lei para aumento das penas previstas no Código penal, quando o crime for praticado por motivo de homofobia ou transfobia.

Embora a articulação da bancada evangélica seja uma reação à ação analisada no STF, não está claro se a aprovação de uma mudança que se restrinja a aumentar à pena seria suficiente para influir no resultado do julgamento, já que a corte prevê enquadrar a homofobia e a transfobia na Lei do Racismo.(BBC, 2019)

Apesar dos esforços do legislativo, a matéria foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de junho de 2019, teve como relatores o Ministro Celso de Mello e Edson Fachin, estabelecendo as teses que: até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/2018 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe; a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio; o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.

É possível verificar a influência de preceitos religiosos na legislação de algo tão importante e necessário na sociedade brasileira, como a criminalização da homofobia. As ações propostas ao Supremo Tribunal Federal vão além da homofobia são uma clara demonstração de como se dar atualmente a efetividade do princípio da laicidade, frente à atuação religiosa no poder legislativo.

Haja vista que o Estado possui no exercício do seu poder legislativo o envolvimento com a religião, legislar sobre leis voltadas a garantir o livre exercício de consciência e de crença, bem como tratar sobre temas que envolvem princípios religiosos torna-se difícil. Sem leis específicas para sanar os conflitos referentes à liberdade de consciência e de crença e sua proteção, seguindo o princípio da laicidade instituído da Constituição Federal, o problema acaba nas mãos do Poder Judiciário Maior.

Segundo Leonardo Vieira Souza o Princípio da Laicidade no Estado Brasileiro possuí forma própria, não sendo esta forma absolutamente laica, mas com fortes e nítidas influências religiosas. (SOUZA, 2019) O Estado laico brasileiro, está intimamente ligado a religião, desde as campanhas políticas, até os políticos eleitos, por tanto, representantes do povo, representando e lutando por causas próprias no Congresso Nacional. O que afeta a criação de leis que sanem efetivamente os atos contrários a liberdade religiosa, zelando pela efetivação do laicismo elencado na Carta Maior. Quando os conflitos são levados ao judiciário, são então sanados pelo Supremo Tribunal Federal, pelo exercício do neoconstiotucionalismo, fazendo às vezes no legislativo.

O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis. (BARROSO, 2005, p.12)

Conforme explana Barroso (2005), no neoconstitucionalismo o Supremo Tribunal Federal, interprete da Constituição Federal, torna-se também legislador, uma vez que completa o trabalho do mesmo, ultrapassando a mera interpretação, tornando-se um criador do direito, em razão de questões “abertas”, não sanadas pela lei, em busca de uma solução para as mesmas.

Como visto, a política brasileira possui um forte marco da religião, o que reflete diretamente no Estado e nos seus poderes, assim, as lacunas quanto às condutas de proteção e garantia a liberdade de consciência e de crença se tornam comum atribuindo à missão de saná-las ao guardião da Constituição Federal no exercício do neoconstitucionalismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O princípio da laicidade, conforme sua origem e aplicação nos Estados Democráticos de Direito até os atuais dias, determina a separação entre Estado e Religião, todavia é adotado de formas diversas em diferentes países, conforme suas crenças e marcas históricas. O Brasil adotou o princípio da laicidade oficialmente em 1890 na Constituição Republicana, mas frente à forte influência da igreja Católica na origem do país e no decorrer da sua história, a religião continuou ligada ao Estado. Por fim, em 1988, com a Constituição Cidadã, o constituindo originário trouxe várias mudanças para o Estado após um período ditatorial, e manteve a princípio da laicidade.

O território brasileiro é bastante vasto, e possui muitas ideologias e religiões diferentes, desde os segmentos católicos e evangélicos, ao candomblé e umbanda, o que requer uma real aplicação do princípio da laicidade para garantir a todos os direitos elegidos na Carta Magna, quais sejam: a liberdade de consciência e de crença, seu livre exercício e a igualdade perante o estado, sem prejuízo dos seus direitos (BRASIL, 1988, art. 5, incisos VI e VII). Todavia, o poder estatal do Brasil ainda está ligado à religião.

A Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional é uma demonstração de risco a efetividade do princípio da laicidade. Seja por omissão do Congresso, seja com conflitos sociais diante a diversidade, questões quanto à liberdade religiosa e a aplicação da constituição surgem, e não há leis para saná-las. Daí origina-se as ações no Supremo Tribunal Federal.

No Brasil o princípio da laicidade não vem sendo aplicado amplamente pelo Estado, em primeiro plano há envolvimento direito com a religião, o que é vedado no art. 19 da Constituição Federal; em segundo, o Estado não está sendo capaz de garantir a todos o livre exercício de liberdade de consciência e de crença por não dispor de leis que efetivem este princípio constitucional.

Quando a Suprema Corte sana a falta desta legislação, o mesmo ultrapassa a mera interpretação do texto constitucional e cria um novo ordenamento para trazer a solução a uma demanda social. Assim, a efetividade do princípio da laicidade instituído da Constituição Federal de 1988 do Brasil, se dar através da atuação neoconstitucionalista de interpretação pelo Supremo Tribunal Federal.

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O que a Constituição Brasileira diz sobre a laicidade do Estado?

O § 2º de seu art. 11 proclamava que “é vedado aos Estados, como à União, estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Firma-se então o Estado laico no Brasil, em que todas as religiões contam com a proteção estatal. Consagra-se a liberdade de crença e de culto.

Qual a importância da sociedade laica na sociedade contemporânea?

Ela é parte da nossa identidade. Reflete a nossa escolha e as nossas conquistas. Mas, também sabemos o quanto foi, historicamente, desastroso colocar os valores religiosos como imposição num contexto social tão amplo e plural como a nossa sociedade.

O que é o princípio da laicidade?

A ideia de laicidade significa a separação formal entre Igreja e Estado e significa o que se diz ser a neutralidade estatal em relação a qualquer religião.

Qual o principal objetivo de um Estado laico?

O Estado laico trata todos os seus cidadãos igualmente, independentemente de sua escolha religiosa, e não deve dar preferência a indivíduos de certa religião. O Estado também deve garantir e proteger a liberdade religiosa de cada cidadão, evitando que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas.