Que atividades são realizadas para a sobrevivência da comunidade quilombola?

A utilização do trabalho escravo no Brasil foi uma prática marcada por diversas manifestações de resistência contra esse tipo de relação de trabalho opressivo. Entre tantas alternativas, a constituição dos quilombos foi uma das mais ousadas e bem articuladas ações que buscavam quebrar as imposições da administração colonial. Apesar de sua relevância, poucos são os registros que demonstram a presença e o funcionamento desse tipo instituição no período colonial.

Formado a partir da reunião de vários escravos fugitivos, um quilombo passava a constituir um tipo de comunidade bastante diferente das que foram criadas pela ação dos colonizadores portugueses. Os habitantes dos quilombos, chamados de “quilombolas”, participavam de todo o trabalho que envolvia a obtenção de alimentos e construíam pequenas oficinas onde fabricavam suas roupas, utensílios domésticos, ferramentas de trabalho e móveis.

Mais do que uma simples comunidade, o quilombo era formado em locais de difícil acesso. Tal medida visava impedir a recaptura dos escravos fugidos. Geralmente, o quilombo também era organizado na proximidade de estradas para que os quilombolas pudessem assaltar os viajantes que por ali transitavam. Não se limitando ao abrigo de escravos africanos, os quilombos também serviam de morada para índios e criminosos que escapavam da justiça.

Nessas comunidades, conforme aponta alguns relatos, houve o desenvolvimento de um código moral e de justiça bastante peculiares. O adultério, o roubo, o homicídio e a deserção eram severamente punidos com a pena de morte. Ao mesmo tempo, os quilombos foram importantes para que traços diversos da cultura africana se mantivessem vivos em nossa própria cultura atual. Ritos, danças, pratos e expressões comuns ao território brasileiro são nitidamente influenciados pela cultura africana.

Um dos mais importantes quilombos do período colonial foi criado na serra da Barriga Verde, no estado de Alagoas. O Quilombo dos Palmares, formado no início do século XVII, abrigava uma série de quilombos menores e constituía uma grande comunidade integrada por milhares de pessoas. O período de expansão desse quilombo aconteceu durante as invasões holandesas, momento em que vários escravos aproveitaram do distúrbio para fugirem dos engenhos.

Durante muito tempo, a destruição deste quilombo preocupou as autoridades coloniais daquela região. Após a deflagração de várias batalhas, o capitão-mor Fernão Carrilho quase deu fim à Palmares em 1678, após aprisionar vários de seus principais líderes. Quando a contenda parecia estar finalmente resolvida, apareceu a figura do líder Zumbi rearticulando novas forças que resistiram até os últimos anos do século XVII.

Atualmente, existem várias comunidades que são remanescentes de quilombos formados durante a época colonial. Reconhecendo a presença e a soberania dos descendentes de quilombolas nessas regiões, o governo concedeu títulos de propriedade aos habitantes dessas regiões. Estimativas publicadas no ano de 2008 apontam que existem 185 comunidades quilombolas espalhadas em cerca de 980 mil hectares.

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  • 2 A Comunidade Ressaca da Pedreira pertence ao município de Macapá-AP, distante 35 quilômetros da sed (...)

1O artigo1 analisa o modo de vida e territorialidade da comunidade quilombola Ressaca da Pedreira2. No contexto social do grupo, compreende-se como os mesmos concebem e vivem o lugar, expondo seus dilemas, conflitos e relevâncias para manutenção e conservação do ambiente, assim como demonstrando sua relação com o rural amapaense.

2No Brasil, estima-se que existam cerca de 3.000 comunidades quilombolas que, de forma especificada pelo INCRA, somam aproximadamente 1.536 processos abertos, reivindicando regularização. Na região Norte existem 130 autos, sendo 32 no Amapá. Este possui atualmente 05 territórios efetivos: Quilombo do Cúriau, Mel da Pedreira, Rosa, Cunani e Conceição do Macacoari. Os 32 processos abertos estão em fase de elaboração do Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural, como é o caso da Ressaca da Pedreira.

3Os quilombolas são grupos sociais, geralmente rurais, que representam a continuidade de lutas e anseios do negro no Brasil por direitos historicamente negados. Esses sujeitos são marcados por uma historicidade de resistência à exploração do trabalho desde a escravidão colonial, formando territórios de lutas e resistências (FERREIRA, 2012).

4Segundo o INCRA (2016), considerando os territórios titulados e os identificados em processo de regularização, isso representaria 0,03% do território nacional. Essa tão insignificante fração de terras nacionais é suficiente para a bancada parlamentar, que representa os interesses do grande empreendimento rural, boicotar as políticas tanto de regularização de territórios quilombolas quanto de indígenas, impondo sua agenda regressiva.

5O reconhecimento e a legitimação dos territórios quilombolas foram garantidos pelo Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) – CF/1988. O Estado, a partir dele, tem o dever de reparar sua dívida histórica com esses povos, regularizando os territórios. As áreas quilombolas devem ser vistas para além dessa dívida social, mas como um mecanismo que reconhece a diversidade socioeconômica e cultural existente no país, uma maneira de exploração econômica da terra de forma não capitalista (sem assalariamento do trabalho e caracterizado pela produção de excedentes), uma agricultura que atende as demandas locais e, também, por serem ambientalmente mais sustentáveis.

6Em termos de teoria e método, pautamos pela compreensão de duas categorias relevantes no trabalho: o modo de vida e a territorialidade a partir do materialismo dialético e do debate cultural. A primeira tem uma relevância significativa na Geografia, desde La Blache (2005), com seu método regional na metade do século XIX e início do XX, passando pelas análises dos autores citados nesta obra, como Suzuki (1996; 2013), Marques (1994) e Nabarro (2014). A importância atual desta categoria perpassa histórica, social e cultural pelo que são compreendidas as populações tradicionais no âmbito da luta de classes. A territorialidade quilombola, analisada a partir dos autores, como: Raffestin (1993), Silva (2008), Lira e Neto (2016), Treccani (2006) e Saquet (2015), são algumas fontes usadas para interpretar os quilombos discutindo a territorialidade, da relação que esses povos historicamente realizam com o espaço, envolvidos em disputas, conflitos e resistências.

7Realizamos uma análise crítica, que envolve o debate da reparação histórica dos povos quilombolas historicamente relegados à subalternidade, pela justificativa de garantir o território via Estado com base neste estudo de caso. Além da terra/território, discutimos os impactos que a monocultura da soja e milho (recentemente produzida na região) vem promovendo, afetando as roças, o ambiente e a saúde das pessoas na comunidade. Para a realização desta pesquisa, foram feitos trabalhos de campo com entrevistas orais junto aos membros da comunidade (de diferentes faixas etárias, gênero e funções exercidas), entrevistas com representantes de órgãos oficiais, imagens e mapas.

8Em termos de resultados é possível refletir que a comunidade é carente no acesso a políticas públicas para o desenvolvimento socioeconômico local, para melhoramento da produção, linhas de crédito, assistência técnica e outros. Sobre a regularização fundiária é perceptível a divisão interna: os que apoiam e aqueles que a entendem como empecilho futuro para fins imobiliários/especulativos.

9Este artigo foi organizado da seguinte forma: na primeira parte, analisamos as categorias do trabalho (modo de vida e territorialidade quilombola), a seguir apresenta-se um histórico da gênese da comunidade e sua relevância na atualidade. Em seguida, expõem-se as principais práticas econômicas desenvolvidas na Ressaca da Pedreira, seus conflitos e dilemas; e, por fim, nas considerações finais, uma reflexão sobre os pontos apresentados ao longo do trabalho.

10O conceito modo de vida permite a reflexão sobre a sociedade e seus diversos grupos, do seu contexto mais amplo ao particular, caracterizando-se, dessa maneira, como um processo da construção social, agregando fatores ideológicos, políticos, econômicos e ambientais que, na Geografia, se iniciaram desde as discussões sobre gênero de vida em La Blache (2005). Esta categoria se torna relevante para compreender as mudanças ocorridas nos grupos sociais, abarcando as populações tradicionais que doravante se encontram diante de profundas transformações frente ao processo de reprodução ampliada do capital. Todavia, os modos de vida tradicionais representam uma forma de resistência contra as ideologias e relações capitalistas que são postas de forma autoritária e manipulada.

11Estudar o modo de vida das populações tradicionais, como, por exemplo, o quilombola, adquire um significado importante, por oferecer elementos, como a tradição e o costume, que, mesmo influenciados pela dinâmica do capitalismo e da modernidade, expõem um contraponto à aparente invasão inquestionável das relações econômicas que parecem transformar a tudo e a todos sem encontrar resistência (NABARRO, 2014).

12Esta categoria pode ser entendida, a priori, como um conceito que trata das práticas cotidianas de determinado grupo. Suzuki (1996, p. 179) nos afirma que “o modo de vida se define pela forma como os moradores percebem, vivem e concebem, em específico, o espaço”.

13Em outro trabalho, Marques (1994, p. 5-6) expõe que “o modo de vida corresponde a um conjunto de práticas cotidianas desenvolvidas por um determinado grupo social e decorrente de sua história, da posição que ocupa na sociedade envolvente e da forma especifica que assegura a sua reprodução social”.

14Suzuki (2013, p. 633), ao engendrar sua concepção com a de Marques, reformula e afirma que o modo de vida se configura:

Pela forma como os moradores concebem, vivem e percebem o espaço, mediados pelos conjuntos de práticas cotidianos e por sua história, posição que ocupa na sociedade envolvente e forma específica de assegurar sua reprodução social, constituindo o modo pela qual o grupo social manifesta sua vida.

15Desta maneira o modo de vida destaca como a sociedade se relaciona com a natureza, produzindo e se apropriando do espaço, criando novas formas de relações sociais. Outro ponto relevante sobre conceito ocorre na criação de territórios e territorialidades decorrentes das práticas que se realizam nas dimensões materiais e imateriais da realidade social. “O Modo de vida se realiza, então a partir de dimensão materiais e imateriais como forma de apropriação e de reprodução das relações sociais em que se inserem os sujeitos, definindo práticas territoriais” (SUZUKI 2013, p. 633); por sua vez, este produz territorialidades e territórios, relacionados à sociedade e à natureza.

16A base material e imaterial permite apreender que o modo de vida, no caso dos quilombolas, manifesta as práticas e relações próprias, que representam uma forma de resistência diante das mudanças abruptas, difundidas pelo mundo moderno. Revela como são complexas as realidades nas quais se inserem as populações tradicionais, em que a luta pela terra e por suas identidades é fator importante para continuidade desses grupos.

17O modo de vida envolve dimensões materiais e imateriais. Os materiais se correlacionam com a formação de território e reproduz formas de territorialidade. Isso ocorre devido à apropriação e reprodução de novas e velhas formas de relações sociais, nas quais se inserem os sujeitos, configurando práticas territoriais. As dimensões imateriais se caracterizam nas relações de poder, como nos conjuntos de regras de uso do território.

18Elas expressam o processo de reprodução e recriação dos territórios e territorialidades. Nessa perspectiva, torna-se importante definir o território. Nos apropriando de Raffestin (1993, p. 143), este defende que tal categoria se forma a partir do espaço, enquanto resultado de ação conduzida por um grupo social de qualquer nível. Correlacionando ao conceito de território quilombola, é possível entender que a territorialidade deste grupo se faz pela apropriação sobre o ambiente herdado dos ancestrais.

19Reitera-se que “territorializar-se” significa ter poder e autonomia para estabelecer determinado modo de vida em um espaço, para estabelecer as condições de continuidade da produção material e simbólica deste modo de vida” (SILVA, 2008, p. 25). Deste modo, o território é resultado das condições processuais, sociais, espaciais, ambientais e de desenvolvimento (LIRA; NETO, 2016).

20A territorialidade quilombola é estabelecida como construção, movimento, no tempo e no espaço, em suas mediações entre sujeito e natureza registrada pela memória individual e coletiva, que conformam uma identidade (MALCHER, 2006; TRECCANI, 2006). Dessa maneira, pontua-se que refletir sobre o modo de vida e as territorialidades permite fazer uma análise que busca a “cooperação, para o desenvolvimento com mais justiça social, recuperação ambiental, solidariedade, participação e preservação do território em pluridimensionalidade como patrimônio da humanidade” (SAQUET, 2015, p. 123).

Compreendendo a comunidade Ressaca da Pedreira

21A comunidade Ressaca da Pedreira está localizada a 35 quilômetros da capital Macapá, com acesso por rodovia pavimentada, a AP-070. Sua posição geográfica lhe favorece um trânsito constante com a cidade, com uma área aproximada 2.500 hectares. De acordo com dados fornecidos em pesquisa a campo na comunidade, residem ali aproximadamente 360 pessoas, distribuídas em 65 famílias.

Mapa 01: Território Quilombola Ressaca da Pedreira – localização

Que atividades são realizadas para a sobrevivência da comunidade quilombola?

22A origem da comunidade Ressaca da Pedreira está relacionada com o ancestral, Sr. Vicente Valério da Silva e a Sra. Carlota Barbosa da Silva, descendentes de africanos. De acordo com informações coletadas, Vicente, em 1934, “instalou-se no local com esposa e filhos, por meio da compra de uma posse” (CARVALHO, 2017, p. 31). Este casal possui uma origem diversa: ele era oriundo de uma localidade denominada Três Vistas, assentada na Lagoa dos Índios (outra área quilombola em Macapá) e a esposa, de uma localidade chamada Os Cavalos, que ficava na bacia do Matapi (área com inúmeros quilombos).

23Essa historicidade contribui na conformação do modo de vida das populações quilombolas, a exemplo disso, cita-se o autorreconhecimento como tal, junto ao Instituto Palmares (que emite o certificado de auto definição como remanescente de Quilombo), representando uma identidade quilombola coletiva na comunidade, o qual permitiu à mesma reivindicar a legalização fundiária das suas terras. Além disso, este elemento histórico contribui na territorialidade quilombola, à qual expõe a origem das regras e condutas, como: parentesco e a cooperação.

24O território da comunidade Ressaca da Pedreira se encontra em processo de regularização fundiária (oficializar-se território quilombola), cujo processo tem início em 2010 com a certificação de auto reconhecimento como remanescente de quilombo, pela Fundação Cultural Palmares. As terras foram compradas (registradas em cartório, mesmo sendo oficialmente posse) em 1934, por Vicente Valério, antepassado fundador, do qual todos os moradores quilombolas se reconhecem como descendentes. Nesta área, como já exposto, residem aproximadamente 360 pessoas (esta soma enquadra os quilombolas e não quilombolas). No que se refere aos quilombolas, registra-se cerca de 98 vivendo na comunidade, distribuídos em 27 moradias.

25O Amapá, com sua institucionalização enquanto ente federativo na Constituição Federal de 1988, não lhe outorgou, de imediato, a destinação para o Estado das terras, permanecendo ainda federais, num imbróglio que perpassa anos. As terras se compõem essencialmente por posses em áreas públicas, unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos rurais e áreas de marinha. O Incra/MDA vem atuando há algum tempo na regularização de parte das terras, no caso de quilombos, pelo Programa Brasil Quilombola. Ao mesmo tempo, o Amapá, que não possuía graves denúncias de conflitos agrários, vem apresentando índices cada vez maiores de grilagem de terras, cujas mesmas passaram a ser inseridas na produção de grãos (soja e milho) (CPT, 2016).

26O processo de titulação do quilombo, por exemplo, expôs que parte do território reivindicado está sob o domínio de outros, foram vendidas áreas de posses para outros agricultores que também produzem roças. Desta maneira, a comunidade se compõe tanto por descendentes originais quanto por pessoas externas, fator que dificulta o processo de regularização e conformação do território quilombola. Soma-se a isso, terras que vêm sendo paulatinamente cobiçadas por grileiros para fins de especulação e disponibilizá-las à produção de grãos.

27Com base no trabalho de campo, notou-se que entre os quilombolas de Ressaca da Pedreira, não existe consenso em relação aos moradores não quilombolas, se os mesmos devem permanecer no território. Parte dos entrevistados defende a saída de todos os não quilombolas, para que tenham mais áreas para trabalhar e lugar para os parentes que pretendem retornar.

28Por outro lado, existem aqueles que se manifestam a favor da permanência de algumas dessas novas famílias na área. Muitos deles inclusive fazem parte da Associação de Moradores e Agricultores da Comunidade da Ressaca da Pedreira, participam diretamente na política local e alguns foram beneficiados pelo Programa Nacional de Habitação Rural.

29Esse imbróglio promove muitas vezes desgastes e conflitos internos, podendo até mesmo inviabilizar ou postergar a ação efetiva e definitiva do Estado. Consideramos complexa e difícil a retirada com indenização daqueles que estão nas terras, primeiro porque muitos destes já estão inseridos no seio comunitário e, também, pela decorrência das fragilidades orçamentarias do INCRA.

As práticas rurais na Ressaca da Pedreira: agricultura, pesca e extrativismo.

30O modo de vida quilombola da comunidade é marcado pelas práticas rurais, no qual as atividades de agricultura, extrativismo, pecuária e pesca têm destaque. A primeira atividade rural a ser apontada é a agricultura, na qual a técnica praticada é o sistema de coivara. Este compreende o rodízio de áreas para o plantio, permitindo a recuperação das “capoeiras”, que logo se tornam mata secundária. Nota-se que este tipo de prática garante a conservação do ambiente, permitindo a recuperação do solo, porém, depende da disponibilidade de áreas mais extensas, que garantam a alternância de áreas utilizadas e, desta maneira, a recuperação do solo e ambiente.

31Na pesquisa de campo foi possível observar diversas plantações de maracujá (Figura 01) na área de Manuel Antônio de Deus, pertencentes a filhos e netos dele, e a alguns não quilombolas. Nessa área existem roças de mandioca e de cultivo combinadas com macaxeira, banana, cana e abacaxi. Igualmente, na área de dona Maria José e seu irmão Elídio, há roças de cultivo mistas, com o predomínio de mandioca para a fabricação de farinha. A roça de Oziel possui uma produção mista, associada com outro agricultor, composta por: macaxeira, banana, abacaxi, acerola, açaí, graviola, coco, banana, acerola, graviola, cana, abacaxi, coco, açaí.

Figura 1 - Roça de maracujá na propriedade do Sr. Ramos

Que atividades são realizadas para a sobrevivência da comunidade quilombola?

Fonte: Pesquisa de campo. Org.: Campos (2017).

32As roças são feitas nas áreas de cerrado, ecossistema controlado pelas condições naturais particulares, como os elementos climáticos e pedológicos. No Amapá, este domínio conserva algumas características com os cerrados do Planalto Central, mas, com características particulares, devido a sua história evolutiva, baseada nos regimes amazônicos. Suas características fisionômicas se dão por vegetação caracterizada pelas formas campestres, com uma flora lenhosa dispersa, possuindo adaptação fisiológica e morfológica às condições restritivas do meio físico e às maneiras de manejos inapropriados, comumente através de queimadas sazonais.

33Durante a atividade de campo foi possível observar a roça de uma moradora (Figura 02). Nos quintais da residência, a quilombola, esposo e seus familiares estão iniciando uma produção mista de culturas, como: favaquinha, cebolinha, banana e pimenta. Um elemento importante a se destacar é que, para melhorar o desenvolvimento do cultivo, foi perfurado um poço amazonas, para ajudar na irrigação, fato este muito pontuado nas falas dos moradores que trabalham com a agricultura, os quais declaram que um dos problemas, em boa parte das roças, é a escassez de água no verão.

Figura 2 - Roça com produção diversificada: cebolinha, favaquinha, banana, pimenta

Que atividades são realizadas para a sobrevivência da comunidade quilombola?

Fonte: Pesquisa de campo. Org.: Campos (2017).

34Nas atividades de campo foi notada outra prática comum, a subutilização dos quintais das casas para o cultivo diverso de plantas e criação de animais (como frangos e suínos). Existe uma variedade de árvores frutíferas como cajueiros, acerola, graviola, mangueiras, bananeiras dentre outros. Consideramos uma rica diversidade caracterizada como agricultura de excedentes.

35Na área existem alguns quilombolas em conjunto com não quilombolas participando do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que é promovido pelo Governo Federal, pelo qual eles podem fornecer alimentos para escolas e entidades sociais. Os produtos normalmente vendidos são: banana, jerimum, melancia, milho verde, farinha de mandioca, tapioca, pepino, maxixe, feijão verde. Outras vendas são feitas também na feira do agricultor, em Macapá, realizada às terças e quintas-feiras, com transporte feito por caminhão pago pelo Governo do Amapá.

36Outro ponto importante a ser destacado é a atuação dos técnicos do RURAP na Ressaca da Pedreira, órgão público estadual que oferta assistência técnica e extensão rural aos agricultores na comunidade. De acordo com entrevista cedida por um técnico: “fiscalizamos e orientamos quem realmente é agricultor para fornecimento de Carteira de Aptidão ao Pronaf (DAP)”. Além disso, explicam aos moradores como gerenciar suas roças e como funciona o acesso ao crédito e aos programas institucionais, como o PAA (executado em parte pelo órgão).

37Na Ressaca da Pedreira, foi identificado um problema com infestações nas roças, como o caso da mosca branca, proveniente da produção da soja em terras vizinhas. Esse inseto tem atingido culturas como as frutíferas. Segundo os agricultores, no ano de 2017 houve prejuízos, pois seus frutos não chegaram a se desenvolver, o crescimento é interrompido antes do tempo pela doença da praga. Na busca de minimizar isso Oziel utiliza uma técnica tradicional, a seiva da raiz do timbó diluída em água, para aplicar nas plantas doentes.

38A comunidade, assim, se deparou com problemas em suas roças, correlacionados com áreas vizinhas que estão produzindo soja. Essa cultura tem provocado sérios problemas às produções na área, pelo uso de agrotóxicos, provocando a morte ou ressecamento das plantas antes da colheita, contaminação da água, riscos a saúde humana pela contaminação do ar pela pulverização. Esse sistema descola a mosca branca para as roças da comunidade (que não usa veneno em escala).

39Com base nas falas obtidas nas entrevistas notou-se opiniões diferentes sobre a relação da produção da soja no entorno da Ressaca da Pedreira. Desta forma, nota-se duas opiniões: aqueles que possuem uma vivência e relação mais direta com ambiente, se sentem prejudicados com todo o processo, pelo comprometimento das roças e também da própria saúde de todos ali viventes. Outros moradores, que não dependem da agricultura e vivem fora da comunidade, não consideram prejudicial esse empreendimento, pelo contrário, consideram que esse modelo de agricultura capitalista promove o desenvolvimento no Estado. O agricultor Manoel argumenta: “aonde já macho! Que a soja vai trazer coisa boa pra o Estado, taí para dirigir um trator precisa de quantas pessoas? Só um, isso só é desenvolvimento para eles, pra nós não trouxe emprego não trouxe nada, só essas pragas pra nossas roças”.

40Dando continuidade à reflexão sobre as práticas produtivas na comunidade, é perceptível que estas são diversificadas, com agricultura e extrativismo do açaí. Esta produção está localizada no ecossistema de floresta de várzea, concentra-se nas margens de rios de água barrenta e é regulada pelos regimes de marés. Esse domínio apresenta uma riqueza de biodiversidade. Destacam-se algumas vegetações características desse ambiente: Açaí (Euterpe oleracea); Buriti (Mauritia flexuosa); Ucuúba ou Virola (Virola surinamensis); Pracaxi (Pentachleta macroloba); Andiroba (Carapa guianensis).

41O açaí é importante para a economia da maior parte das famílias quilombolas. Antes, ele era utilizado apenas para consumo próprio e trocas dentro da comunidade, mas recentemente, passou a ser valorizado e comercializado. Eles vendem o produto nas margens da rodovia, como afirma o Sr. Manoel: “para nós é bom viver perto da rodovia, os caras vem compra aqui com a gente, nem gastamos com transporte”. Este fato revela a inserção de novos padrões correlacionados às práticas tradicionais, neste caso expressando a relação de aproximação e distanciamento ante os valores urbanos industriais.

42Os quilombolas, ao serem indagados sobre como é feita a manutenção de sua produção, expõem que apenas precisam realizar a limpeza da área de entorno, para que a própria flora e fauna realizem a semeadura das mudas. Isto reflete o manejo tradicional praticado na área, na qual retiram os produtos da floresta, todavia permitindo a recuperação do bioma. A seguir, é possível visualizar como as atividades produtivas estão distribuídas no território (roças de agricultura e extrativismo no Igarapé Fugido).

Mapa 2 - Comunidade Ressaca da Pedreira Ramal: atividades produtivas e comunidade

Que atividades são realizadas para a sobrevivência da comunidade quilombola?

43O mapa acima expõe como está distribuída a área onde se localizam os lugares de moradias, que estão nas margens da rodovia AP 70. Tem-se, também, a localização das roças que, a localidade do Igarapé Fugido, onde é realizada a extração de açaí e também, onde estão postas as produções de soja adjacentes à comunidade. Desta maneira, percebe-se como o território dos quilombolas é ocupado pelos mesmos e como é importante a titulação de seus 2.500 hectares como Quilombo.

44Com base nas atividades em campo, é possível inferir que na comunidade da Ressaca da Pedreira existem práticas produtivas de predominância mista. Neste caso, encontra-se a combinação de diferentes atividades, tais como agricultura, extrativismo de açaí, venda de frutas dos quintais em barracas armadas na beira da estrada (manga, milho etc.) e trabalhos como diaristas em propriedades do entorno. Ainda sobre os tipos de serviços variados desenvolvidos pelos moradores, registra-se trabalhadores na escola da comunidade, alguns agricultores que também são comerciantes, neste caso cita-se o Sr. Ramos e o outro, o Sr. José Maria, os quais vendem uma variedade de produtos: carne em conserva, sardinha, ovos, frango congelado, refrigerante, bebidas alcoólicas e pão etc.

45Desta maneira, é possível afirmar que na comunidade Ressaca da Pedreira coexistem práticas econômicas baseadas em uma economia de mercado, que busca comercializar produtos industrializados e, por outro lado, mantêm-se práticas rurais tradicionais, concebidas por agricultura de excedentes. Todavia, esta última é expressiva, pois a produção com traços de uma economia de excedente, além suprir a necessidade básica de muitas famílias, é um elemento que contribui na territorialidade identitária do grupo.

Considerações Finais

46Em suma, este trabalho permitiu compreender como se desenvolve o modo de vida e a territorialidade na comunidade quilombola Ressaca da Pedreira, dando destaque a suas práticas rurais, que permitem sua reprodução no cotidiano. De toda maneira, este estudo busca analisar uma das 32 comunidades em processo de titulação. Estas reivindicam, além de suas terras, a possibilidade de reprodução social.

47Notou-se que suas práticas territoriais revelam as múltiplas identidades contidas na maneira de existir dos quilombolas, considerados aqui por populações tradicionais, pois suas identidades, acima de tudo, representam empoderamento político, social e cultural, ou seja, são portadoras de direitos.

48Sobretudo, foi possível perceber que este grupo contribui para o reconhecimento da diversidade socioeconômica e cultural no Estado, com destaque ao rural. Para tanto, percebe-se o quanto é importante garantir a titulação de suas terras, pois assim estará se assegurando o espaço de sobrevivência dos quilombolas e demais moradores que utilizam o território de maneira coletiva e o fazem como mecanismo de controle e uso das terras com base no respeito, parentesco e historicidade.

49Como se constatou, os grupos de parentesco de Vicente Valério se assentaram no lugar enquanto agricultores, fato que se tornou uma especialidade para seus descendentes, pois o mesmo é lembrado por seus netos pelo tamanho de suas roças que fazia e pelos mutirões que mobilizava para produzir farinha. Isto é percebido nas falas dos Sr. Ramos, ao relembrar como era feita a prática da tradicional roça de coivara, que permitia uma agricultura de excedentes, correlacionada a produções em cooperação de mandioca, macaxeira, batata doce roxa e branca, milho, entre outros.

50Nota-se, também, que os recursos naturais no território também foram e têm sido de fundamental importância para a permanência de Vicente Valério e seus descendentes na Ressaca da Pedreira. Neste caso, em especial a área chamada “igarapé fugido” (próxima às terras que margeiam o rio Amazonas) fornece produtos de extrativismo executados coletivamente, com o caso das plantas medicinais, pesca e coleta do açaí.

51Em relação ao processo de titulação do território da comunidade, as áreas propostas a demarcação são menores do que as adquiridas em 1934 pelo antepassado fundador. Desta forma, o território reivindicado permite minimamente a permanecia de suas moradas, para a agricultura, do extrativismo e de pesca. Na entrevista, aos moradores é notório o desejo de titulação da comunidade como Quilombo, pois, dessa maneira estes garantiriam o domínio definitivo das suas terras.

52Ainda sobre as terras da Ressaca da Pedreira, percebeu-se os dilemas envolvidos e pressões da agricultura capitalista. Estes têm promovido a desestruturação e tensionamento ao pressionarem sistematicamente a retirada da comunidade com a venda ou arrendamento das terras para ampliar produção de grãos, além dos danos ambientais e econômicos (roças) que fragilizam a vida social do grupo.

53Com base na análise sobre o modo de vida e territorialidade dos quilombolas e demais moradores no território é possível inferir que a terra é recurso para sua existência e sua reprodução e desenvolvimento. Compreende-se a importância de se ter políticas públicas para esta região, permitindo garantias de direitos e qualidade de vida.

54Assim, defender a titulação do território quilombola é o reconhecimento dos direitos sociopolíticos garantidos em lei. É, também, entender a possibilidade de reprodução de um outro tipo de sociabilidade não capitalista integrado: trabalho, cultura e relação com a natureza. Para tanto, diante dos dilemas vividos pelos moradores da Ressaca da Pedreira é possível refletir que, na comunidade, é necessário se dar ênfase a projetos de desenvolvimento econômico e social que contemplem e respeitem as diversidades regionais e culturais.

Quais atividades a maioria dos quilombolas praticavam para sobreviver?

Extrativismo, artesanato, produção cultural, turismo de base comunitária e a venda de produtos feitos a partir de matérias primas produzidas pela comunidade também contribuem para complementar a renda.

Que tipo de atividades eram praticadas nos quilombos?

O funcionamento dos quilombos considerava a tradição dos escravos fugidos que neles habitavam. Nessas comunidades, se realizavam atividades diversas como agricultura, extrativismo, criação de animais, exploração de minério e atividades mercantis. Nesses locais, os negros tratavam de reviver suas tradições africanas.

Como é o modo de vida em uma comunidade quilombola?

Ainda hoje existem comunidades quilombolas que resistem à urbanização e tentam manter seu modo de vida simples e em contanto com a natureza, vivendo, porém, muitas vezes em condições precárias devido à falta de recursos naturais e à difícil integração à vida urbana e não tribal.

Quais estruturas servem para produzir itens para sobrevivência dos quilombolas?

Os habitantes dos quilombos, chamados de “quilombolas”, participavam de todo o trabalho que envolvia a obtenção de alimentos e construíam pequenas oficinas onde fabricavam suas roupas, utensílios domésticos, ferramentas de trabalho e móveis.