Por que sevcenko afirma que o Renascimento estava comprometido com a riqueza e a abundância

A crise geral do século XIV foi também uma crise espiritual, a qual trouxe consigo uma profunda inquietação intelectual, caracterizada pela busca de uma nova visão do homem, de Deus e do Universo, além da necessidade de uma profunda renovação cultural que, em linhas gerais, rompesse com as concepções medievais.

Nesse contexto histórico, emergiu um amplo movimento intelectual, filosófico, artístico, literário e científico, que teve suas origens nas repúblicas italianas e que alcançou a sua plenitude nos séculos XV e XVI. Esse movimento ficou conhecido por Renascimento e procurou resgatar a Antiguidade Clássica e os valores da cultura greco-latina.

Por que sevcenko afirma que o Renascimento estava comprometido com a riqueza e a abundância

Davi de Michelângelo Buonarroti

A expressão renascimento foi popularizada em meados do século XVI, quando o artista (escritor, pintor e escultor) Giorgio Vasari (1511-1514) publicou sua obra Vidas dos Mais Exielentes Pintores, Escultores e Arquitetos, em 1550.

Essa expressão, no entanto, deve ser necessariamente questionada, uma vez que pressupõe um preconceito em relação aos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e a própria época dos renascentistas. Assim, a visão deturpada — e que foi amplamente divulgada — sobre a Idade Média, como um período de trevas, superstições, misticismo e ignorância, deve-se a muitos dos intelectuais do Renascimento.

E o mais grave é que as próprias origens desse movimento encontram-se nas amplas transformações pelas quais o Ocidente europeu passou desde o século XII, isto é, em plena “Idade Média”, expressão também cunhada à época do Renascimento.

De qualquer forma, o Renascimento pode ser entendido como o florescimento de um longo processo histórico desencadeado desde a Baixa Idade Média .Foi a riqueza gerada pelas atividades comerciais, notadamente nas repúblicas italianas, que possibilitou o financiamento da produção cultural renascentista. Como observou Nicolau Sevcenko: “o Renascimento, portanto, é a emanação da riqueza e da abundância e seus maiores compromissos serão para com ela”.

Humanismo: base filosófica do Renascimento

O termo humanistas, como intelectuais comprometidos com uma nova visão do homem e do Universo, foi difundido no século XV. No entanto, desde o século XIV, já era perceptível uma crescente insatisfação por parte de estudiosos com as concepções dogmáticas hieráquicas e com os valores culturais vinculados à igreja, até então dominantes.

Os humanistas, em sua maioria nascidos nas repúblicas italianas, buscavam uma revitalização e uma laicização cultural, condições essenciais à uma efetiva emancipação do espírito humano da tutela a que estivera submetido pelos eclesiásticos durante o período medieval. Aliás,estes, no período citado, eram os únicos detentores do saber (saber teológico), a ponto de a palavra clérigo designar não apenas aquele que pertencia a uma ordem religiosa, como também o que possuía a autoridade e, portanto, na concepção medieval, o conhecimento, contrapondo-se aos leigos

O Humanismo pode, então, ser entendido como um amplo movimento que tinha como finalidade, atualizar e dinamizar os estudos tradicionais com ênfase na critica, na filosofa, na matemática e no estudo dos clássicos. Enfim preocupava-se, fundamentalmente, com estudos humanos — estudia humanitatis.

Para os humanistas, era preciso resgatar a cultura greco-latina, uma vez que para eles as civilizações grega e romana eram entendidas como aquelas que mais teriam valorizado o ser humano e suas várias dimensões.

Assim, tornava-se necessário revitalizar os estudos das línguas clássicas (grego e latim) condição essencial para, num segundo momento, estudar-se não apenas a história dos antigos gregos e romanos, mas também suas amplas realizações nos diversos campos do conhecimento. Os humanistas entendiam, ainda, que era preciso resgatar a pureza do latim clássico.

Essa preocupação era constante entre os humanistas, como o poeta Francesco Petrarca (1304- 1374), o mais conhecido de todos os incentivadores do movimento humanista.

O resgate dos clássicos pelos humanistas não se traduziu numa simples cópia do que os antigos gregos e romanos haviam realizado. Grécia e Roma foram referências e modelos que deveriam ser retomados à luz do contexto histórico do Humanismo. A expressão humanista nas artes, na literatura, na filosofia e na ciência foi o “impulso dinâmico”, centrado na máxima valorização do homem e de suas realizações, que levou às várias criações do movimento renascentista.

Essa vinculação entre o Humanismo, entendido como uma redescoberta da capacidade infinita de criação do homem, e o Renascimento foi bem explicitada por Leonardo da Vinci (1452-1519), considerado por muitos autores como o “homem- síntese” do movimento renascentista.

Leonardo da Vinci, pintor, escultor, arquiteto, inventor e engenheiro, desenvolveu também estudos de Anatomia humana, óptica, mecânica, cartografia, física, hidráulica e urbanismo. A multiplicidade de seu gênio criativo refletiu com bastante nitidez o ideal humanista, fundamento básico do movimento renascentista.

É importante considerar que os humanistas procuravam valorizar o que havia de divino nos homens, impulsionando seu potencial para criar, agir sobre a natureza e, dessa maneira, transformar o mundo, de acordo com sua própria vontade, O homem era, assim, elevado à condição de criador (antropocentrismo), deixando de ser entendido como simples criatura subordinada à vontade de Deus (teocentrismo), concepção dominante na Idade Média.

Essa nova visão foi expressa também com bastante clareza por William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo inglês que, numa de suas mais conhecidas tragédias, MacBeth, revelou o ideal humanista, a ousadia e a audácia de quem não mais se deixa limitar pela ética medieval, na passagem em que o personagem principal, o próprio Macbeth, afirma:

“Ouso tudo o que é próprio de um homem;

Quem ousar fazer mais do que isso, não o é.”

Não por acaso, Leonardo da Vinci escreveu que “dentre todas as maravilhas do universo, nada se compara ao homem”.

Razões do pioneirismo italiano

À época do Renascimento, a Itália existia apenas como uma expressão geográfica e cultural. Sua unidade política, diferentemente do que ocorrera com outros países europeus (Portugal, Espanha, França, Inglaterra, etc.), somente se concretizou no século XIX (1870).

Alguns fatores contribuíram para a fragmentação política e a dificuldade de constituição do Estado-Nação, como a rivalidade entre as Cidades-Estados e a própria existência de territórios na Península Itálica diretamente controlados pela Igreja— os Estados Pontifícios.

Entre as principais Cidades-Estados destacaram-se as repúblicas de Veneza e Gênova por sua expressiva participação no comércio euro-asiático que se desenvolvia no Mediterrâneo desde o início da Baixa Idade Média. Mereciam destaque também as repúblicas de Florença e de Siena, além do Ducado de Milão.

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Florença - Italia

Um dos fatores que explicam o pioneirismo italiano foi o conjunto de transformações econômico-sociais que se operaram nas principais cidades italianas. O intercâmbio comercial e o monopólio italiano no Mediterrâneo foram fatores que se articularam e contribuíram para o dinamismo cultural e intelectual.

Outro ponto que merece ser destacado é a tradição clássica mais vigorosa na Península Itálica, berço do Império Romano, além da existência de expressiva quantidade de ruínas e obras de arte da época dos antigos romanos e gregos que despertavam enorme entusiasmo entre os humanistas. É importante considerar que, antes mesmo da formação do Império Romano, colônias gregas foram fundadas no sul da Península Itálica, então denominada Magna Grécia.

O próprio fracionamento político destacou-se como uma das razões para o pioneirismo italiano: às rivalidades políticas e econômicas entre as repúblicas somava-se o desejo de cada uma delas de superar as demais na construção de grandes obras de arte, tanto no campo da pintura e escultura quanto no campo arquitetônico, com a construção de palácios, bibliotecas e catedrais por exemplo.

Para as grandes famílias que dominavam o poder político nas cidades-estados, como os Médicis, em Florença, e os Sforzas, em Milão, era importante apoiar e financiar os humanistas, artistas, poetas e escritores. Essas famílias buscavam reconhecimento e prestígio para si próprias e para suas cidades, tornando-se mecenas, isto é, protetoras e incentivadoras das artes e das letras. E mais: ao contribuírem para o resgate da grandeza do antigo passado clássico, afirmavam sua hegemonia no presente e sinalizavam para o seu grande potencial no futuro.

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Casal Arnolfini- Jan van Eyck

A maior parte das cidades italianas do século XIV e XV fez com que exatamente entre elas o mecenato, fosse mais intenso. Sua burguesia mercantil e financeira, agindo dessa maneira- apoio direto às artes - acabou ampliando as modestas funções e os acanhados limites das cidades medievais.

O movimento renascentista não se limitou às cidades italianas. Se ele foi um fenômeno tipicamente italiano no século XV já no século XVI expandiu-se para outras regiões da Europa, notadamente a Espanha, França, Portugal, Alemanha e Países Baixos. Em cada uma dessas áreas apresentou características específicas.

Características do movimento renascentista

Numa abordagem mais generalizante, podem-se observar os elementos definidores do Renascimento apresentados a seguir.

Por que sevcenko afirma que o Renascimento estava comprometido com a riqueza e a abundância

Escola de Atenas

Classicismo:O Renascimento voltou-se para a Antiguidade, mas, conforme se observou, não para tentar revivê-la. Não é uma simples “volta” ao passado; na realidade, é muito mais uma reinterpretação dos valores greco-latinos.

Individualismo: Contrapondo-se à humildade cristã e ao anonimato, valores tipicamente medievais, os renascentistas, ao afirmarem a grandeza do homem e de suas infinitas possibilidades, destacaram

capacidade individual de criação do ser humano. Com certeza, se a mesma pergunta fosse feita a qualquer um dos grandes mestres da arte renascentista, como Michelangelo (1475-1564), Botticelli (C.1444-1510) ou Rafael

(1483-1520), estes responderiam que eram “apenas” Michelangelo, Botticelli e Rafael. No contexto do Renascimento, um dos grandes processos da modernidade européia, afirmou-se o mais completo individualismo; já não era mais necessário ser “de onde” para ser alguém.

Hedonismo:Traço essencial da Renascença, pressupunha a busca incessante do sublime e da beleza existentes na natureza e no próprio homem. Os prazeres sensoriais deveriam, nessa concepção, produzir uma plena realização espiritual e a auto-satisfação. A busca do prazer passou a ser uma constante, também em oposição ao ascetismo medieval.

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A Virgem de Rochedos

Naturalismo: A integração do homem à natureza e a redescoberta da íntima ligação com o Universo marcaram o movimento renascentista. Procurou-se superar o fantástico, o místico e o sobrenatural, numa tendência que também se contrapunha às concepções medievais.

Antropocentrismo: Em oposição ao teocentrismo medieval, o Renascimento entendia o homem como o centro do Universo, concebendo-o como a medida de todas as coisas, como aquele que, independente da vontade de Deus, faz a sua própria história. Também aí verifica-se uma ruptura com as concepções medievais, segundo as quais o ser humano e suas ações nada mais eram do que uma extensão da vontade do Criador. De acordo com esse simbolismo medieval, a vida do homem nada mais era do que uma caminhada em direção a Deus, cabendo à Igreja o papel de guia. Evidentemente, a visão antropocêntrica apresentava novas perspectivas para o espírito humano. Era preciso resgatar o que havia de “divino” no homem.

Espírito crítico: Os humanistas e cientistas do Renascimento, marcados profundamente pelo pensamento leigo e secular, não mais aceitaram as explicações místicas e alicerçadas na autoridade dos textos sagrados que predominaram na Idade Média. Valorizavam, sobretudo, a experimentação como meio para se atingir o conhecimento científico da realidade. Tal procedimento abriu espaço para um grande desenvolvimento da Matemática, da Arquitetura, da Astronomia, da Física e da Medicina. Essa questão pode ser mais bem entendida quando se toma conhecimento de um interessante episódio ocorrido à época da construção da Catedral de Florença, em que os trabalhos foram interrompidos na primeira metade do século XIV, devido à incapacidade da corporação de mestres de levantar uma cúpula que se sustentasse no ar. A comissão encarregada da construção, então, entregou a continuidade da obra ao arquiteto florentino Filippo Brunelleschi (1377-1446), que, ao assumir a direção dos trabalhos, demitiu em massa os mestres-de-obras, acusando-os de retrógrados, e depois os recontratou, segundo seus próprios termos. Baseado em novos conceitos artísticos, arquitetônicos e científicos, Brunelleschi construiu o domo da catedral, o qual se sustentava no ar sem apoio e com magnitude suficiente “para abrigar, à sua sombra, todo o povo da Toscana”. A construção da cúpula significou a vitória de um novo tipo de artista que, sem apego à tradição e às regras da Corporação, era capaz de dominar as implicações filosóficas do que fazia. Por isso, Brunelleschi foi capaz de projetar uma estrutura antes de construí-la. Percebe-se, nesse caso, a fusão da arte e da ciência, o que implicou numa revolução das técnicas artísticas e de construção, ao mesmo tempo

Em que se verificou a redução das formas e dos volumes ao seu princípio geométrico, possibilitando

Se alcançar a essência das coisas, valendo-se da proporção.

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Catedral de Santa Maria Del Fiore

Racionalismo: O crescimento científico dessa época, marcado pelo método experimental, levou à rejeição das interpretações dogmáticas e à valorização da razão. Só se podia aceitar como verdade em ciência aquilo que o homem compreendia por meio de seu intelecto. Abandonaram-se, pois, superstições e lendas típicas do período medieval. Assim, verificou-se a subordinação do mundo real às leis físicas, o que contribuiu de maneira decisiva para o avanço da ciência moderna e para a superação do simbolismo medieval. Também contribuiu para o rompimento do monopólio que os letrados, sobretudo eclesiásticos, mantinham sobre a cultura escrita — a invenção da imprensa (caracteres móveis) em meados do século XV por Gutenberg (1394-1468). A partir de então, verificou-se, progressivamente, uma maior divulgação do saber nos vários campos do conhecimento.

Os limites do renascimento

É preciso, no entanto, relativizar o movimento renascentista e suas características, uma vez que suas várias manifestações nos campos das artes e das ciências ficaram, substancialmente, restritas às elites de seu tempo.

Assim, aprofundou-se o fosso entre cultura erudita e cultura popular.

Essa questão fica bastante clara quando se sabe que, em meados do século XVI, Nicolau Copérnico (1473-1543), em sua obra De Revolutionibus Orbium Coelestium (1543), afirmava que a Terra não ocupava o centro do Universo, e que esse lugar fixo cabia ao Sol, com os planetas girando ao seu redor. Poucos foram aqueles que o levaram a sério.

A maioria das pessoas continuou acreditando no sistema geocêntrico, de autoria do matemático Ptolomeu, que vivera no século II d.C. A explicação heliocêntrica de Copérnico foi considerada por muitos como absolutamente fantasiosa.

Portanto, apesar dos grandes avanços verificados nos vários campos da ciência e da beleza de sua arte, o Renascimento não conseguiu romper em definitivo com a mentalidade dominante, ainda profundamente marcada pela explicação dos fenômenos da natureza com base numa força superior ou divina.

No entanto, também é preciso considerar que naquele momento estavam sendo fundadas as bases do pensamento científico moderno. A ciência começava a emancipar-se de seus vínculos com as concepções medievais.

A razão de ser dos fenômenos naturais passou a ser entendida como imanente a eles próprios, isto é, a explicação para eles residia neles mesmos, sendo, portanto, independente da vontade divina ou de uma força superior ou externa.

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O enterro do Conde de Orgáz