Que você leu Qual foi o gancho a partir do qual jornalista desenvolveu a reportagem?

Episódio do podcast Vida de Jornalista publicado em 30/6/2021. Veja aqui a íntegra do roteiro

Por Rodrigo Alves

O episódio em áudio está na Orelo, no Spotify, na Apple ou no seu aplicativo preferido (basta buscar por Vida de Jornalista).

O roteiro do episódio na íntegra:

[INÍCIO DO EPISÓDIO]

[VINHETA RÁDIO GUARDA-CHUVA]

O Vida de Jornalista tem o selo da Rádio Guarda-Chuva. Jornalismo para quem gosta de ouvir.

[LOCUÇÃO]

Você gosta de ouvir? Então ouve essa voz.

[ÁUDIO HERZOG — ENTREVISTA SOBRE DUBLAGEM]

Eu, pessoalmente, sou mais favorável do que contrário à ideia de dublagem. Isso tendo em vista principalmente o tipo de sociedade na qual vivemos.

[LOCUÇÃO]

Esse é um registro raríssimo da voz do jornalista Vladimir Herzog, num depoimento pra TV Cultura no início dos anos 70, sobre dublagem no cinema. A gravação dura menos de um minuto e meio, é um vídeo, em preto e branco. E o Herzog tá segurando o microfone, vestindo uma blusa de botão, de cor clara, com o cabelo preto, calvo. Ele parece bem relaxado, olhando o tempo todo pra câmera.

[ÁUDIO HERZOG — ENTREVISTA SOBRE DUBLAGEM]

Muita gente reclama contra a dublagem, dizendo que teremos um prejuízo estético, que seria castrar o resultado criativo do filme. Mas já estamos aceitando a dublagem na televisão, boa ou má, não importa, estamos aceitando. Portanto tornar o cinema acessível, eu acho que compensa o prejuízo estético, se é que esse prejuízo existe.

[LOCUÇÃO]

Quando eu falei o nome do Herzog, ou quando você leu o título do episódio aí no seu celular, antes de apertar o play, você provavelmente buscou na sua memória uma imagem. A imagem de uma cela com a porta aberta, uma cadeira escolar em primeiro plano com papéis rasgados no chão, e ao fundo, na parede, o jornalista pendurado pelo pescoço, as pernas dobradas, naquela tentativa tosca do regime militar de encenar um suicídio, quando na verdade Herzog tinha sido torturado e assassinado pela ditadura no DOI-CODI em São Paulo.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Essa imagem é muito conhecida, e essa é a primeira e última vez que a gente vai falar dela nesse episódio. Não foi por acaso que eu abri o episódio com a voz do Vlado. O Vlado vivo. Porque é esse Vlado que eu quero te levar pra conhecer hoje. O repórter que começou brilhando no jornal O Estado de São Paulo. O grande editor de Cultura na revista Visão. O homem de rádio na BBC de Londres. O diretor na TV Cultura. O Vlado jornalista.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

E é claro que eu não vou sozinho nessa jornada. Vou chamar duas pessoas pra contar essa história. Já quero agradecer e dar as boas-vindas ao Ronald Sclavi.

[RONALD SCLAVI]

Rodrigo, eu que agradeço essa possibilidade de participar do Vida.

[LOCUÇÃO]

E também ao Luis Ludmer.

[LUIS LUDMER]

Oi, Rodrigo, é um prazer estar aqui com você. Agradeço muito o convite.

[LOCUÇÃO]

O Ronald e o Luis tão envolvidos numa pesquisa enorme que hoje tá disponível no site acervovladimirherzog.org.br, uma coleção de documentos, fotografias, vídeos, correspondências e, na parte que mais interessa pra gente, muitos registros de cada uma das etapas da carreira jornalística do Vlado. Então eu escolhi essa semana tão importante, porque o Vlado completaria 84 anos no domingo dia 27 de junho, e a Clarice, esposa dele, faz 80 anos um dia depois da publicação desse episódio, na quinta-feira, 1º de julho. Se você estiver ouvindo, Clarice, parabéns pelo aniversário e pela luta durante esses anos todos.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Deixa eu começar com o Ronald Sclavi. Ele é jornalista e professor desde os anos 90, e ao longo dessa trajetória ele foi esbarrando com algumas figuras que tiveram muita ligação com o Vlado.

[RONALD SCLAVI]

Eu falo de Rodolfo Konder, que estava… foi preso na mesma leva do Vlado lá no DOI-CODI.

[ÁUDIO RODOLFO KONDER]

E o Vlado logo se aproximou de mim, porque primeiro tínhamos, assim, uma leitura muito parecida de certas coisas.

[RONALD SCLAVI]

Que me apresentou Serjão, Sérgio Gomes da Silva.

[ÁUDIO SÉRGIO GOMES DA SILVA]

E aí que eu conheci o Vlado. Discreto, sempre debruçado sobre a prateleira, um cara genuinamente preocupado com a obra que ele tá fazendo, não se dispensava não.

[RONALD SCLAVI]

Que por sua vez me apresentou Marco Antônio Rocha…

[ÁUDIO MARCO ANTÔNIO ROCHA]

O Vlado era a repórter do Estadão, eu era repórter da Última Hora. Então, a gente se cruzava em coberturas.

[RONALD SCLAVI]

Mas em nenhuma dessas situações eu pensei em estudar a obra do Vlado. Mas foi num contato com uma aluna, o nome dela é Caroline Simões.

[LOCUÇÃO]

A Caroline já tinha feito o TCC, ali em 2017, mas ela ainda tava cumprindo algumas matérias que faltavam na faculdade, e um dos trabalhos era produzir uma reportagem de fôlego.

[RONALD SCLAVI]

E ela falou, olha, eu queria fazer alguma coisa relacionada ao Vlado. Eu falei ah, Carol, mas tudo que já tinha que ser dito sobre o Vlado já foi dito, né? Não, pois é, mas eu queria fazer alguma coisa sobre ele como jornalista e tal. Ela falou: eu não conheço nenhuma matéria que o Vlado tenha assinado. Aí, rapaz, fez um plim, né?

[EFEITO PLIM]

[RONALD SCLAVI]

Se você perguntar pra dez jornalistas, quem foi Vladmir Herzog, a resposta vai começar sempre assim: foi um cara que morreu, violentamente, assassinado nos porões da ditadura. Sobre a vida, não há muita coisa, e sobre a obra efetiva como jornalista, não havia quase nada.

[LOCUÇÃO]

Pronto, tava ali a pauta da Caroline. Ela entrevistou pessoas, pesquisou no acervo do Estadão…

[RONALD SCLAVI]

E ela encontrou uma mina de ouro, um acervo da revista Visão, na hemeroteca da biblioteca Mário de Andrade.

[LOCUÇÃO]

A Caroline fez a reportagem, que acabou virando parte das homenagens aos 80 anos do Vlado em 2017.

[RONALD SCLAVI]

Nós editamos uma espécie de um livreto, uma versãozinha impressa dessa matéria, e distribuímos na praça Vladimir Herzog, com a presença da Clarice, com a presença de várias pessoas ligadas ao Vlado, distribuímos pras pessoas 80 cópias daquela matéria que ela fez.

[LOCUÇÃO]

Esse evento na praça marcou a inauguração da banca de jornal.

[ÁUDIO TV GAZETA — BANCA DE JORNAL]

Repórter: Vladimir Herzog, esse é o novo nome desta banca de jornais no centro de São Paulo. A banca fica na mesma praça do memorial que presta homenagens a Vlado.

[LOCUÇÃO]

E tava todo mundo lá, até o frei Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

[ÁUDIO TV GAZETA — LEONARDO BOFF]

Então, nós precisamos daquela coragem que o Vladimir Herzog teve e mostrou como jornalista, denunciando essa situação.

[RONALD SCLAVI]

E daí eu comecei a minha história com o Vlado.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

O Ronald fez alguns mergulhos na hemeroteca pra entender o que tinha sido a passagem do Vlado pela revista Visão. E logo depois, em 2019, veio uma mostra do Itaú Cultural chamada Ocupação Vladimir Herzog, que fez uma imersão profunda na trajetória do Vlado.

[RONALD SCLAVI]

E essa imersão teve entre os curadores o professor Luiz Ludmer.

[LOCUÇÃO]

Eu já já vou chamar o Ludmer pro nosso papo aqui. Mas naquele momento o Ludmer pediu pro Ronald dar um depoimento na mostra, contando essas primeiras impressões sobre a pesquisa da revista Visão. Várias outras pessoas também gravaram depoimentos…

[RONALD SCLAVI]

E o Itaú Cultural então, além de fazer uma linda mostra, que foi a mostra mais vista daquele ano, do Itaú Cultural, além de fazer isso ele financiou o acervo virtual Vladimir Herzog com todo o o material sobre vida e obra. Aí, sim, eu passei a integrar a equipe que levantou esse acervo.

[LOCUÇÃO]

E agora sim eu chamo o Luis Ludmer.

[LUIS LUDMER]

Bom, vamos lá, Rodrigo.

[LOCUÇÃO]

Vamos nessa, pra gente entender melhor o que tem no acervo levantado por essa equipe de pesquisadores.

[LUIS LUDMER]

Dentre os pesquisadores, o Ronald, que tá aqui nesse episódio também, a quem eu agradeço muito pela colaboração, porque ele fez uma pesquisa bastante relevante, profunda, acho que inédita também da revista Visão, da produção do Vlado como editor da Revista Visão. Aliás, sua trajetória desde redator e colaborador, até ser incorporado na equipe.

[LOCUÇÃO]

Nessa semana da publicação do episódio, pra marcar os 84 do nascimento do Vlado e o aniversário de 80 anos da Clarice, o Instituto Vladimir Herzog lançou a campanha Duas Vidas, uma só luta. O site foi reformulado, tá com um site novinho, e o acervo ganhou mais de 200 itens novos, sem falar no documentário sobre a vida da Clarice, com lançamento no dia 1º de julho às sete e meia da noite no canal do Instituto no YouTube. O acervo tem hoje mais de 2 mil itens…

[LUIS LUDMER]

Em sua maior parte fotografias, mas há algumas centenas de documentos que são a totalidade das matérias jornalísticas ou publicadas em jornais ou periódicos como a revista Visão, onde o Vlado trabalhou.

[LOCUÇÃO]

É uma delícia ficar navegando pelo acervo, tem de tudo ali, e tudo muito bem organizadinho. Desde carteiras de trabalho, os registros dos veículos por onde ele passou, certidão de nascimento. Aliás na certidão de nascimento dá pra ver, se você ainda não sabe, que Vlado não é um apelido carinhoso pra Vladimir. Vlado era o nome dele de verdade. Ele nasceu em 1937, na antiga Iugoslávia, filho de um casal de origem judaica. E na Segunda Guerra a região da Croácia era controlada pela Alemanha nazista, então a família foge, primeiro pra Itália, depois pro Brasil, onde o Vlado se naturaliza, e adota o nome Vladimir, que era mais comum por aqui. As primeiras carteiras de identificação ainda tinham o nome Vlado Herzog. A da Associação Paulista de Imprensa, por exemplo, registrava a matrícula 5346 e a função de Noticiarista no jornal O Estado de São Paulo, onde ele começou. Aliás, bom gancho pra gente abrir a jornada pela carreira do Vlado — ou do Vladimir, como você quiser.

[ÁUDIO INAUGURAÇÃO BRASÍLIA]

Narrador: A primeira dama do país quebra a garrafa de champanhe. A elegância sóbria e requintada dos novos carros desperta a admiração dos presentes.

[LOCUÇÃO]

Você consegue deduzir o que era esse evento aí? Vou te dar uma dica, foi em 21 de abril de 1960.

[ÁUDIO INAUGURAÇÃO BRASÍLIA]

A seguir, o presidente Kubitschek, dona Sara e o doutor Israel Pinheiro deixam o Catetinho para dar início às primeiras solenidades inaugurais da nova capital.

[LOCUÇÃO]

Pois é, era a pomposa inauguração de Brasília.

[ÁUDIO INAUGURAÇÃO BRASÍLIA]

Em automóveis, chegaram à nova capital brasileiros de todos os rincões da pátria, para assistir à mudança da capital.

[LOCUÇÃO]

E essa foi a primeira cobertura relevante de um repórter que ainda tava começando.

[LUIS LUDMER]

O Vlado iniciou a carreira dele como jornalista muito cedo. Ainda durante a faculdade de Filosofia lá da USP, na Maria Antônia, aqui em São Paulo, ele já foi apresentado por um professor, ele e o Luiz Weis foram apresentados ao Perseu e Claudio Abramo, na redação do Estadão. E o Vlado começa a colaborar inicialmente num suplemento feminino, que seria o suplemento literário, ou cultural, ele vai mudando de nome.

[LOCUÇÃO]

Deixa eu só perguntar pra você que tá ouvindo, você já se acostumou com as vozes, tá tudo ok? Esse foi o Luis Ludmer, agora a gente vai pro Ronald Sclavi.

[RONALD SCLAVI]

Ali você tem um típico repórter em formação. Já havia ali, como o acervo também revelou que já na formação educacional desse rapaz Vladimir Herzog já havia um cara de uma formação intelectual diferenciada. Rapidamente um foca, como nós chamamos, foi colocado pra cobertura de nada menos do que a inauguração de Brasília.

[LOCUÇÃO]

E ali era um Vlado de 22 anos, que tinha começado no Estadão no ano anterior.

[LUIS LUDMER]

E você percebe muito jovem, ele já tem uma capacidade crítica e um senso crítico bastante desenvolvido sobre a cultura brasileira. Então, ele fala sobre cinema, que é uma coisa que ele gosta, teatro, mas ele cobre, por exemplo, a vinda do Sartre ao Brasil, né, a famosa de conferência de Araraquara.

[LOCUÇÃO]

Isso também foi em 1960, quando Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, filósofos e escritores franceses, passaram dois meses no Brasil e visitaram mais de 10 cidades.

[ÁUDIO ENTREVISTA SARTRE]

Repórter TV TUPI: No aeroporto de Congonhas, chegando a São Paulo, Jean Paul Sartre em companhia de sua esposa, a escritora Simone de Beauvoir. A saudação do Jean Paul Sartre a toda a intelectualidade bandeirante e também à população de São Paulo.

[LOCUÇÃO]

Esse áudio é de uma imagem maravilhosa da TV Tupi, com um monte de gente na pista do aeroporto, e o repórter nota que tem uma faixa enorme falando da revolução cubana.

[ÁUDIO ENTREVISTA SARTRE]

Repórter da TV Tupi: Aqui está uma faixa dizendo: o povo paulista saúda em Sartre o defensor da Revolução Cubana, e cabe uma pergunta então, já que ele esteve em Cuba.

[LOCUÇÃO]

Mas o tradutor queria interromper a entrevista, porque o homem tava cansado da viagem, e o repórter da TV tentando arrancar uma declaração ali de qualquer jeito.

[ÁUDIO ENTREVISTA SARTRE]

Repórter da TV Tupi: … da Revolução Cubana?

Tradutor: Jean Paul Sartre fará uma coletiva hoje.

Repórter da TV Tupi: Para os telespectadores…

Tradutor: Ele está muito fatigado.

[LOCUÇÃO]

E foi essa visita, com a imprensa toda desesperada por qualquer declaração do Sartre e da Simone, que o Vlado cobriu como repórter do Estadão.

[LUIS LUDMER]

Então não era qualquer repórter que a família Mesquita escolheria ou dotaria de ser o representante que cobriria essa vinda do Sartre ao Brasil, principalmente porque houve um jantar do Sartre com os Mesquita, depois na fazenda deles no interior de São Paulo.

[ÁUDIO ENTREVISTA SARTRE]

Tradutor: Jean Paul Sartre acha que a Revolução Cubana segue naturalmente o rumo que deveria seguir, e somente este rumo é que deve ser dado. E tudo que Fidel Castro está fazendo é exatamente correto.

Pessoa: Salve a Revolução Cubana!

Repórter da TV Tupi: Palavras de Jean Paul Sartre, que acabou de chegar a São Paulo hoje, sendo saudado por membros da intelectualidade bandeirante e ainda por membros da nova geração.

[LOCUÇÃO]

O final da entrevista é essa bagunça, uma gritaria, gente entrando na frente da câmera. E depois realmente rolou essa coletiva que o tradutor tinha citado. O Vlado obviamente tava lá, e no acervo tem a reprodução da página do Estadão publicada no dia 3 de setembro de 1960, e também a transcrição da matéria, que tem um estilo de texto fabuloso. Era uma entrevista coletiva, teoricamente simples, mas ele faz uma descrição tão detalhada do ambiente, das cenas, do comportamento, que o texto leva a gente pra dentro daquela sala. A matéria começa assim, ó:

[LEITURA DE REPORTAGEM]

Trinta pessoas aglomeradas em torno de uma mesa. Sentado à cabeceira, um homem, baixo, estrábico, nos dedos uma cigarrilha que se apaga instante a instante, a voz clara, sem inflexões

exageradas, a gesticulação natural, responde durante uma hora a perguntas de toda a espécie. Sério, parece evitar os ditos irônicos, a anedota, mas sorri duas ou três vezes. Ignora o acender dos flashes, os microfones que lhe são quase enfiados em pleno rosto e as conversas próximas. Jean Paul Sartre falou ontem à tarde à imprensa, mas o número de curiosos, na maioria

estudantes, era superior ao de repórteres. Entrou no salão dez minutos depois da hora marcada, apertou a mão de dois ou três admiradores, foi levado a um sofá, sentou-se, rodearam-no,

levantou-se, tornou a sentar-se à cabeceira da mesa, convidou os outros a fazerem o mesmo, acendeu uma cigarrilha, olhou em volta e esperou. As perguntas se sucederam.

[LOCUÇÃO]

O acervo tem 59 matérias do Vlado no Estadão, muitas de cobertura política, e muitas também sobre cinema, que era outra paixão dele. Aí vem um momento fundamental pra ele se formar como um jornalista de audiovisual.

[LUIS LUDMER]

Logo após o Estadão, o Vlado vai pra Londres, onde ele passa alguns anos como correspondente da BBC.

[LOCUÇÃO]

Ele trabalhou no serviço de língua portuguesa da BBC, primeiro no rádio…

[LUIS LUDMER]

Mas já com a intenção de ser um jornalista de televisão e de televisão educativa, tanto que ele não volta de Londres sem conseguir fazer um curso na BBC de telejornalismo e televisão educativa. O Vlado já também na paralela desde jovem desenvolve uma carreira de cineasta e isso é uma das grandes comprovações que o acervo traz, que pouco se fala na história do Vlado cineasta, mas muito jovem ele dirige um curta-metragem, documentário, que é o Marimbás, em 63.

[LOCUÇÃO]

Os marimbás eram pessoas pobres que moravam na praia no Rio de Janeiro, mas não eram pescadores, eles viviam dos restos de peixes descartados pelos pescadores.

[ÁUDIO DOCUMENTÁRIO MARIMBÁS]

Homem: Quando tem peixe a gente frita aí na praia mesmo.

[LUIS LUDMER]

Então, tanto no jornalismo, quanto nos cinemas, sempre esse cunho e um olhar crítico sobre a sociedade e as mazelas da sociedade brasileira.

[LOCUÇÃO]

Ele fica em Londres com a Clarice e os filhos até 1970, e é nessa passagem pela BBC que a gente ganha mais uma rara chance de ouvir a voz do Vlado.

[ÁUDIO PEÇA BBC]

A BBC apresenta: Vladimir Herzog em Verdadeiro demais para ser bom. Adaptação de uma peça de Bernard Shaw.

[LOCUÇÃO]

É uma adaptação pro rádio, e ele interpreta um ladrão de joias que convence a dona das joias a participar de um golpe.

[ÁUDIO PEÇA BBC]

Vlado: Ms. Mople, Ms. Mople, não se incomode, não é sua querida mãe, é o ladrão. Olhe, a campainha está logo a seu lado na mesa da cabeceira, basta apertar o botão e terá polícia e sua mãe em cima de mim. E será uma mísera inválida o resto de sua vida. A perspectiva não é muito sedutora, é? Olhe, escute, eu tenho um plano importantíssimo a lhe propor, que mudará inteiramente sua vida, fará da senhorita uma outra mulher.

[LOCUÇÃO]

Nesse período de Londres ele já fazia uns frilas pra revista Visão. E pensava em trabalhar com TV.

[ÁUDIO PEÇA BBC]

Vlado: Pode tocar a campainha quando quiser. Só peço cinco minutos.

[RONALD SCLAVI]

Em 70 ele volta pro Brasil, dizem os biógrafos do Vlado, com uma promessa de trabalhar na TV Cultura. Promessa que não se cumpre naquele momento.

[LUIS LUDMER]

O Vlado volta logo depois AI-5. Ele chega no Brasil num momento bastante delicado. Ele e a Clarice refletiram muito nesse volta, não volta, porque também eles não tinham uma garantia lá de empregabilidade, de que tudo daria certo na Europa. E o Vlado já era um sobrevivente do nazismo, tinha vindo da Segunda Guerra Mundial, aos 9 anos de idade, e ele tinha o Brasil como o país dele, os pais dele estavam aqui. Ele tinha conexões muito profundas com a cultura brasileira e se sentia brasileiro sobretudo.

[RONALD SCLAVI]

E aí ele ingressa na Visão como funcionário. Então, o período de 70 a 75 é o período do grande amadurecimento do Vlado, como jornalista, como pessoa, como homem que viveu a ditadura militar no Brasil, como o cara que mergulhou na cultura brasileira, ativando seus contatos com a intelectualidade, etc e tal. Então, ali tá o coração, o coração da produção jornalística do Vladimir Herzog é a revista Visão.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

É esse coração que a gente vai visitar agora. A Visão era uma revista singular, a começar pelo fato de que era de direita na parte da economia, mas de esquerda na parte da cultura, onde o Vlado assumiu como editor. A Visão ocupa um lugar no mercado de revistas que ainda não tinha sido ocupado.

[RONALD SCLAVI]

Você tinha, por exemplo, a Veja, fazendo um jornalismo meio Time, um resumo da semana. Você tinha a Realidade com aqueles mergulhos gigantescos de reportagem, a la José Hamilton Ribeiro e tal, só que você não tinha uma revista de informação, como a Visão. Então, a Visão se consolidou como uma revista de informação de uma periodicidade um pouco mais larga. Ela começa semanal, depois ela vira quinzenal, ela tem essa periodicidade um pouco mais larga e essa possibilidade de examinar a realidade.

[LOCUÇÃO]

Era uma redação pequena, diferente de outras redações daquela época, que tinham muita gente. Mas era um time de altíssimo nível.

[RONALD SCLAVI]

Era um Dream Team né? Era um negócio do outro mundo. Você tinha Miguel Urbano Rodrigues, em Nova York correspondentes como Paulo Francis, por exemplo, colaboradores da revista do peso de Ruth Cardoso. Você tinha, entre os jornalistas, claro, Marco Antônio Rocha, como editor de economia, o Luís Weis editando política, enfim, era um timaço incrível reunido ali, pensando a edição com muito carinho.

[LOCUÇÃO]

E nasce ali uma dupla histórica pro jornalismo brasileiro, uma ponte aérea entre Vladimir Herzog e Zuenir Ventura.

[LUIS LUDMER]

O Vlado e o Zuenir eram uma dupla, o Zuenir no Rio de Janeiro e o Vlado em São Paulo, que debatiam a cultura brasileira no meio dos anos de chumbo ali, desses anos turvos, conturbados, da ditadura, debatiam sem censura, escancaradamente a crise da cultura brasileira.

[ÁUDIO ZUENIR VENTURA]

Nós nos conhecemos, Vlado e eu, quando eu fui, enfim, para a Visão, em 1970.

[LOCUÇÃO]

Esse é depoimento do Zuenir Ventura na mostra do Itaú Cultural.

[ÁUDIO ZUENIR VENTURA]

E surgiu dessa desse companheirismo, desse trabalho, uma amizade muito sólida. O Vlado, eu ficava na casa do Vlado, dormia na casa do Vlado, que a gente ficava discutindo matéria, fazendo pauta, né? E ele chegou a passar um carnaval lá em casa.

[LUIS LUDMER]

E o Vlado e o Zuenir eram excelentes editores, que é uma questão pouco debatida hoje na imprensa, mas o papel do editor é muito importante. Pra pegar os textos de todos os colaboradores eventuais e mesmo dos seus redatores da casa, e lapidar esses textos com essa equipe, pra chegar numa qualidade alta. Eu acho que essa era a grande potência da sessão de cultura da revista Visão, era a qualidade do texto.

[RONALD SCLAVI]

Engraçado, naquela época contratava muito freelancer, inclusive, pra fazer matéria, e eu acho que isso também tem um pouco a ver com a formação desse Vlado mais editor do que propriamente repórter, como descreve Zuenir Ventura, etc e tal.

[ÁUDIO ZUENIR VENTURA]

Era, quer dizer, no caso, a gente também tinha essa identidade em termos culturais, ele era editor de Cultura e eu era o chefe sucursal, quer dizer, da redação da sucursal, mas na verdade, quer dizer, todo o meu interesse, aliás, o interesse meu durante toda a minha vida profissional foi a cultura. Então, tudo pra mim passa pela cultura. Então, a gente tinha essa afinidade, inclusive a gente tinha, né, nosso interesse era um interesse cultural. As matérias que fizemos juntos, que ele editou, e o que eu fiz ou fizemos juntos, foram matérias culturais, né?

[LOCUÇÃO]

Entre essas matérias dá pra gente dizer que houve uma trilogia em 71, 72 e 74 com reportagens analíticas fundamentais sobre o panorama cultural brasileiro. A primeira talvez seja a mais importante do Vlado…

[RONALD SCLAVI]

Feita a quatro mãos por ele e por Zuenir Ventura, batizada com a matéria do Vazio Cultural e tal, um tom muito crítico em relação ao desenvolvimento cultural brasileiro.

[LOCUÇÃO]

Essa matéria conhecida como a do vazio cultural completa nessa semana, da publicação desse episódio, 50 anos. Ela tá na edição da revista de 5 de julho de 1971. A capa era uma mulher como uma venda nos olhos, e a frase: O que há com a cultura no Brasil? O primeiro parágrafo era assim, ouve só.

[LEITURA DE REPORTAGEM]

Respondendo a um questionário distribuído por Visão no princípio do ano e organizado com o objetivo de fazer o balanço cultural de 1970, muitos intelectuais manifestaram sua decepção e pessimismo em relação ao passado recente, e preocupação em relação ao futuro. A conclusão revelava que a cultura brasileira estava em crise. Contrastando com a vitalidade do processo de desenvolvimento econômico, o processo de criação artística estaria completamente estagnado. Um perigoso vazio cultural vinha tomando conta do país, impedindo que, ao crescimento material, cujos índices estarrecem o mundo, correspondesse idêntico desenvolvimento cultural. Enquanto o nosso produto interno bruto atinge recordes de aumento, o nosso produto interno cultural estaria caindo assustadoramente.

[RONALD SCLAVI]

E com métodos jornalísticos, que hoje a gente não usa. Por exemplo, a primeira matéria do Vazio Cultural, ele e o Zuenir fizeram um questionário e distribuíram pras principais cabeças, pros principais intelectuais brasileiros. E esses intelectuais não foram citados na matéria, isso é muito engraçado também. Eles meio que protegeram esses intelectuais e constataram o tal do vazio cultural na época.

[LOCUÇÃO]

E a trilogia continua, fazendo um retrato da cultura brasileira no início dos anos 70.

[RONALD SCLAVI]

Aí você tem uma outra matéria em 1972, que fala sobre independência cultural, que já tem um tom de retomada. E a matéria de 74, pouco tempo antes dele morrer, já fala de uma efetiva retomada cultural, de uma esperança em relação ao momento que tava se desenhando, o momento político brasileiro. Tinha essa vontade que o Brasil tinha, de se libertar, de fazer melhor, de fazer diferente, de encontrar liberdade, que pra nós, jornalistas, é tão fundamental e importante, eu acho que tinha essa vontade de fazer o novo.

[LOCUÇÃO]

Inclusive um jornalismo novo.

[RONALD SCLAVI]

Eu acho que o Vlado desenvolveu um jeito de cobrir cultura nesse país. A forma como o jornalismo cultural era praticado por ele naquele momento é muito significativa, é muito importante, precisa ser melhor estudada. Porque nós tivemos uma cobertura, se você pegar três matérias, essas que eu citei: a do vazio cultural a de 1972 e a de 74, essa trilogia de matérias sobre cultura, e ler essas três matérias na sequência, e eu tô falando de matérias com mais de 60 páginas de revista, você vai ver um retrato da cultura brasileira naquele tempo. É quase um livro sobre cultura brasileira contemporânea.

[LOCUÇÃO]

E aí o Vlado finalmente consegue ir pra televisão.

[MÚSICA]

[ÁUDIO AUDÁLIO DANTAS]

O Vlado assumiu o cargo de diretor de jornalismo no dia 3 de setembro, e já nesse dia havia uma campanha claríssima contra ele e a equipe que era toda considerada comunista.

[LOCUÇÃO]

Essa voz é do Audálio Dantas, grande jornalista brasileiro, que morreu em 2018, autor do livro As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. Nesse áudio o Audálio fala do momento em que o Vlado assume a direção da TV Cultura. Isso acontece em 1975, e poucos meses depois ele é assassinado. Mas daqui a pouquinho a gente conta o último capítulo dessa trajetória jornalística. Antes eu vou fazer o intervalinho pra te dar uma dica da Rádio Guarda-Chuva, e o episódio de hoje tem uma ligação direta com a Guarda-Chuva porque a Juliana Dantas, do podcast Finitude, é filha do Audálio Dantas, que a gente acabou de ouvir, contemporâneo e biógrafo do Vlado.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Além do Finitude, a dica que eu quero te dar hoje é o Põe na Estante, o clube do livro em áudio da Gabriela Mayer, que tá curtindo merecidíssimas férias depois de uma temporada fantástica só com livros clássicos. Termina com A Metamorfose, do Kafka, com o personagem que um belo dia acorda transformado numa barata. Eu fico bastante tenso com baratas. E você sabia que o inseto do livro pode não ser uma barata? Eu fiquei um pouco chocado com essa informação, eu soube disso ouvindo o episódio, então se você ainda não ouviu vai lá. E não precisa ter lido os livros não, porque é uma dose bem aceitável de spoilers, não atrapalha em nada.

[LOCUÇÃO]

Te lembrando também que terminaram as aulas da oficina de podcasts do Vida em junho, na próxima quarta eu vou publicar os dois mini-episódios que a gente produziu nas turmas, os dois sobre jornalismo nas periferias. E se você quer fazer a oficina, as próximas turmas devem ser em agosto, já tem uma lista de espera, então me manda logo um e-mail pra , e aí eu já te coloco aqui na lista. Beleza? Vamos voltar pro episódio?

[LOCUÇÃO]

Até agora tá dando pra acompanhar direitinho aí linha do tempo? Deixa eu recapitular aqui pra você: Vlado começa no Estadão em 1959, aí vêm as coberturas da inauguração de Brasília e da visita do Sartre; depois ele vai pra Londres, trabalha na BBC e colabora como frila pra revista Visão; em 1970 volta pro Brasil com a promessa de ir pra TV Cultura, mas não rola, e ele fica fixo na Visão de 70 a 75, redefinindo o jornalismo cultural no Brasil. E no meio desses cinco anos aí de 70 a 75, tem um período que ele acumula o trabalho na revista com uma primeira passagem pela TV Cultura, em 1973, quando ele é recrutado pelo amigo Fernando Pacheco Jordão, que esteve com ele em Londres, pra ser um dos editores do telejornal Hora da Notícia.

[RONALD SCLAVI]

É ao mesmo tempo na Visão e na Cultura, e já não mais como colaborador, mas no caso da Visão como editor de cultura da revista Visão e sim, ele trabalhava junto com Fernando Pacheco Jordão nesse telejornal, que foi um telejornal, que até hoje, pra quem estuda telejornalismo, pra quem gosta de telejornalismo, telejornal que fez história no telejornalismo brasileiro.

[ÁUDIO HORA DA NOTÍCIA]

Um em cada sete operários é atingido por acidente anualmente no Brasil. Essa é uma das conclusões do 12º Congresso Nacional de Prevenção de Acidentes. Segundo o congresso, os setores que mais provocam acidentes são: derivados de petróleo, mineração, indústrias metalúrgicas e construção civil. Você vai ver nessa reportagem especial de Hora da Notícia, como trabalham os operários de um desses setores, o da mineração.

[LOCUÇÃO]

Esse tipo de assunto não era muito comum nos telejornais da época, ainda mais na TV pública.

[ÁUDIO HORA DA NOTÍCIA]

A seguir pela TV Cultura, MPB especial, hoje com Paulo César Pinheiro. Hora da Notícia volta amanhã às doze horas e trinta minutos com a sua edição da tarde. Até lá.

[LOCUÇÃO]

Então é claro que essa linha editorial que fugia do padrão começou a incomodar. Em dezembro de 74 o jornal é extinto, o Fernando Pacheco Jordão é demitido, e a equipe é desfeita. Vlado continua na revista Visão, e ele volta à TV Cultura menos de um ano depois, em 3 de setembro de 75, pra assumir a direção de jornalismo do canal. Mas a repressão já tava muito atenta, e há muito tempo. A prisão dele se dá em 75…

[LUIS LUDMER]

Mas a gente sabe que o Vlado desde 67, aparecem fichas sobre o Vlado.

[LOCUÇÃO]

Como a gente ouviu o Audálio Dantas dizendo ainda há pouco, nessa passagem final pela Cultura o Vlado e boa parte da equipe já eram filiados ao PCB.

[RONALD SCLAVI]

Partido Comunista Brasileiro, que recusava a luta armada, é preciso sempre deixar isso claro, né? Porque nesses momentos de revisão histórica que a gente tá vivendo aí, ou de negacionismo histórico, é bom a gente deixar isso muito claro. O Vlado jamais pegou em armas, enfim, nada disso. Era um partido pacifista, né, por definição.

[LOCUÇÃO]

E é claro que isso não impediu aquela repressão violentíssima. Em 1975 pelo menos 12 jornalistas foram sequestrados, presos e torturados. Herzog, que não tinha nada a ver com a luta armada, fez um acordo e se apresentou voluntariamente ao DOI-CODI.

[RONALD SCLAVI]

Havia uma ilusão de que a repressão agiria apenas em reação àqueles que aderiram à luta armada, né? Mas era muito mais profundo que isso, né, Rodrigo? Eu acho que a repressão agia contra a inteligência, agia contra o pensamento.

[LUIS LUDMER]

Só que aí a tragédia de outubro de 75 todo mundo conhece. E o Vlado tinha três meses que ele tinha assumido a direção de jornalismo da TV Cultura. Então, termina assim a vida do Vlado. Termina com um assassinato brutal por agentes de estado, que tentam negar e forjar um suicídio.

[RONALD SCLAVI]

E depois com a reação espetacular do sindicato dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo, presidido pelo Audálio Dantas, que leva ao ato ecumênico, e eu acho que aquele ato ecumênico é a marca do início do fim da ditadura militar.

[ÁUDIO ATO ECUMÊNICO]

Audálio Dantas: Em nome de Deus homem, nós pedimos paz. Nós desejamos a paz.

[LOCUÇÃO]

Esse é o Audálio Dantas discursando durante o culto ecumênico dirigido por Dom Paulo Evaristo Arns no dia 31 de outubro de 75, na maior manifestação pública de repúdio à ditadura desde 1964, diante de 8 mil pessoas na Catedral da Sé, em São Paulo.

[ÁUDIO ATO ECUMÊNICO]

Audálio Dantas: Eu quero fazer um apelo como a última homenagem nesse momento de dor para todos nós. Ao nosso irmão morto, ao homem morto, ao Deus homem morto, ao Deus que está em todos os homens. Silêncio.

[RONALD SCLAVI]

Aquele ato ecumênico reunindo milhares de pessoas na Catedral da Sé e na Praça da Sé de um modo geral, escancara, a partir da morte do Vlado, a tortura e a violência nos porões da ditadura militar. E a classe média paulista e brasileira tem o seu: olha, então havia uma ditadura, havia uma repressão atuante. Aquilo deixa claro quando os principais líderes religiosos unidos, falam assim: olha, estamos diante de uma morte violenta e não de um suicídio, isso é fundamental, isso é muito importante.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

A trajetória de um jornalista brilhante foi interrompida brutalmente no dia 25 de outubro de 1975. E como a gente tá num podcast de jornalismo, fica essa reflexão sobre o legado que aquela geração deixa pra gente hoje.

[RONALD SCLAVI]

E essa geração do Vlado era uma geração que tinha um pensamento. Luiz Ludmer diz isso. Talvez tenha sido a última grande geração de jornalistas com uma visão de mundo muito ampla, né? Uma visão de mundo muito maior do que as áreas que cobriam, né? Eles tinham visão política, mesmo cobrindo o esporte, ou cobrindo economia, ou cobrindo cultura, né? Tinha visão cultural, mesmo cobrindo economia, e daí por diante, quer dizer, você tinha uma, uma visão eh de mundo muito elaborada.

[LUIS LUDMER]

E esse acervo que a gente tem hoje, eu acho que ele é um ato histórico de reparação, de memória, de verdade sobre quem foi o Vlado. E explica um pouco porque ele, talvez, incomodasse tanto, como a imprensa hoje incomoda o nosso governo. Acho que tem que entender o que quer dizer o papel da imprensa num país em que a democracia está em risco.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Obrigado, Ludmer, pelo acervo e por dividir um pouco dessa história com a gente aqui no Vida.

[LUIS LUDMER]

Fica aqui então o meu agradecimento. Espero que os ouvintes aproveitem aqui um pouco da nossa conversa e fucem lá o site.

[LOCUÇÃO]

Fica mais uma vez essa dica, pra você ir lá no acervovladimirherzog.org.br, uma quantidade incrível de documentos históricos. Lembrando sempre da ajuda do Instituto Vladimir Herzog, da Clarice, e dos filhos Ivo e André. E agradeço também ao Ronald Sclavi, adorei o nosso papo.

[RONALD SCLAVI]

Eu adorei também. Valeu, querido. Obrigado.

[LOCUÇÃO]

Valeu demais. Só que antes de terminar, falta uma coisa ainda. Depois dessas últimas reflexões do Ronald e do Ludmer sobre a geração do Vlado, e a comparação com a geração de hoje, eu fiquei com vontade de ouvir uma pessoa que sempre conversa comigo sobre jornalismo e política. Uma pessoa que vira e mexe é citada aqui no Vida e já foi citada hoje: a Juliana Dantas, filha do Audálio, que aliás também faria aniversário por agora, faria 92 anos no dia 8 de julho. Então eu resolvi ligar pra ela. Ligar não, né, que hoje ninguém liga mais pra ninguém. A gente combinou uma chamada.

[EFEITO SKYPE]

[LOCUÇÃO]

Eu adoro esse efeitinho do Skype, porque ele faz você imaginar uma chamada de vídeo, mas nesse caso ele é fake, eu não uso o skype há vários anos. Não importa, vamos lá, atende aí, Juliana.

[CHAMADA JULIANA DANTAS]

[JULIANA DANTAS]

Olá.

[RODRIGO ALVES]

Olá, tudo bem?

[JULIANA DANTAS]

Acordei brasileira, mas estou, tô bem, e você?

[RODRIGO ALVES]

Não é simples acordar brasileira.

[JULIANA DANTAS]

Não.

[RODRIGO ALVES]

A gente falou no episódio, você não ouviu, porque você não tava ouvindo episódio, mas eu tô editando, então eu ouvi (risos). A gente acabou de falar sobre essa questão da participação do seu pai, inclusive, naquele momento do ato ecumênico, quando o seu pai era presidente do sindicato, e aquilo leva a um momento que escancara totalmente o que tava acontecendo na ditadura e o que aconteceu com o Vlado. O seu pai tava no papel central ali, naquele momento, pra acabar com a ditadura que existia no país, naquele momento, o que de fato aconteceu tempos depois. Mas agora a gente tá de volta a um momento em que a democracia tá ameaçada, né? Então, você costuma refletir sobre isso? Seu pai tava naquele momento lá e você tá nesse momento aqui agora?

[JULIANA DANTAS]

O tempo todo (risos). Eu penso nisso sempre e penso nisso com muita angústia, e na verdade desde o ano de 2018, foi curioso porque o meu pai morreu em maio de 2018, e aquelas fatídicas eleições se consolidaram em novembro de 2018. E durante o processo eleitoral eu lembro de chorar várias vezes, literalmente de chorar pensando que muita gente, muitos amigos do meu pai tinham morrido num regime ditatorial, e muitos ainda vivos que foram barbaramente torturados naquela época. Então aquele ano pra mim foi muito emblemático, porque de certa forma, de um jeito meio torto, eu agradeço por meu pai não ter ficado pra ver, sabe? E essa maior angústia foi ter visto, assim, ter crescido vendo essas pessoas que lutaram a duras penas contra o regime, pela democracia, pela liberdade de expressão, e aí do nada, do nada não, né? Mas vemos esse processo aí de tudo indo por água abaixo, né? E é muito bonito ao mesmo tempo ver como essas mesmas pessoas não perdem a esperança, elas continuam batalhando pelas mesmas coisas e não só por elas, mas por uma sociedade, por um coletivo e por uma liberdade coletiva e individual, que a nossa geração, talvez, não esteja capaz, né, de lutar por.

[RODRIGO ALVES]

E uma coragem, assim, né, porque o que acontece ali é você lutar pra expor aquilo que tinha acontecido e não só o seu pai, mas todos aqueles jornalistas que tavam ali, não jornalistas também, religiosos inclusive. É um ato de uma coragem que é assustadora, até, né. Porque você realmente corria um risco claríssimo de ser morto. Né? Então, se eu, que não tenho nenhum vínculo familiar com ele e tal, já fico super orgulhoso de ouvir as histórias, imagino você, né?

[JULIANA DANTAS]

É, o meu pai, na época, ele adotou uma estratégia, ele era altamente fichado, né, fichado, não, né, monitorado. Mas aí, na época, ele adotou uma estratégia que era: vou permanecer em evidência, vou colocar a boca no trombone o tempo todo, porque se sumirem comigo, logo vão perceber. Vão dar falta. E é curioso, né? Porque é um paradoxo, hoje a gente teria muito mais capacidade de articulação, considerando a internet, e hoje a gente tá muito mais incapaz de se mobilizar. E eu não sei como sair desse cachorro correndo atrás do rabo, né? Hoje, acho que, pra grande parte dos jornalistas, ou pelo menos pros veículos de imprensa, não é tão óbvio que se posicionar contra esse governo não é uma questão partidária e sim de civilidade, de civilização, ou de marco civilizatório, né? Então ainda hoje a gente vê muitos jornalistas reticentes em se posicionar achando que é uma questão de partido, quando, na verdade, é uma questão de civilização contra a barbárie. E eu acho que na época, na ditadura, pros jornalistas era muito mais claro o que significava defender liberdade de expressão de fato. E hoje parece que tá tudo muito difuso, parece que a gente ainda tá falando numa lógica esquerda, direita, vermelhos, e azuis.

[RODRIGO ALVES]

É, agora, pessoas se escondendo atrás dessa falácia de uma isenção e tal, quando na real você não tá entre dois lados, né? O seu pai faria aniversário agora, né? Início de julho?

[JULIANA DANTAS]

Oito de julho. E eu dia 9 (risos)

[RODRIGO ALVES]

Que beleza. Parabéns pra você, pro seu pai, esse episódio fica aí de homenagem à família Dantas.

[JULIANA DANTAS]

Ah, muito obrigada. É uma gentileza sua como sempre, senhor.

[RODRIGO ALVES]

Valeu, Ju.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Obrigado a você que ouviu até aqui. Eu sou o Rodrigo Alves, responsável por todas as etapas de produção do podcast, a pauta, as entrevistas, o roteiro, a apresentação, a edição. O Vida de Jornalista é um podcast independente financiado pelos ouvintes, então se você gosta do Vida e pode contribuir mensalmente, dá uma olhada nos planos de apoio no Catarse ou no PicPay.

[LOCUÇÃO]

Nesse episódio você ouviu áudios do Acervo Vladimir Herzog, do canal do Instituto Vladimir Herzog no YouTube, da TV Cultura, da BBC, da TV Gazeta, do Portal EBC, da TV Tupi e do Itaú Cultural.

[LOCUÇÃO]

Vai lá no Twitter ou no Instagram, compartilha o episódio pra mais gente ouvir, e me conta o que você achou, a @ é vida_jornalista, e o e-mail é . Eu volto daqui a 15 dias, e se tudo der certo, eu já volto vacinado, hein.

[ÁUDIO BOLSONARO JACARÉ]

Jair Bolsonaro: Se você virar um jacaré, é problema de você!

[LOCUÇÃO]

Sai pra lá, rapaz, vai assombrar outro. Um beijo, um abraço, e até mais!

[FIM DO EPISÓDIO]