Pardo é o mesmo que mulato, cafuzo ou caboclo, ou seja, uma pessoa com diferentes ascendências étnicas e que são baseadas numa mistura de cores de peles entre brancos, negros e indígenas. O pardo é um dos cinco grupos de cores étnicas que compõem a população brasileira, segundo a classificação do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE, juntamente com os brancos, pretos, amarelos e indígenas. De acordo com o censo do IBGE de 2014, 45% da população brasileira se autodeclara parda. Uma pessoa parda é considerada mestiça, pois apresenta uma mistura acentuada entre uma ou mais etnias. Como consequência, esses indivíduos costumam ter um tom de pele acastanhado (moreno). Saiba a diferença entre Raça e
Etnia. Historicamente, a ideia do pardo como uma “cor e raça” surgiu no Brasil durante o período colonial. Nesta época, o pardo era entendido como uma “casta social” intermediária, estando os brancos (europeus) no topo desta “cadeia racial hierárquica” e os pretos (escravos) na condição mais excluída. De modo geral, a cor parda também é usada para qualificar a tonalidade que varia entre o amarelo e o marrom escuro. Exemplo: “Eu quero um envelope
pardo”. Ver também o significado da expressão “a noite todos os gatos são pardos”. Na última coluna, abordei um dos novos clássicos do jeitinho brasileiro, a fraude nos sistemas de cotas raciais pensados justamente para diminuir desigualdades no acesso a espaços como universidades públicas, entidades de classe etc. Recebemos, no Intercept, diversos emails trazendo outras denúncias, mas um relato nos chamou atenção: tratava-se de uma pessoa autodeclarada parda e expulsa de um curso público de medicina, na Bahia, a apenas seis meses de concluí-lo. Resolvi abordar o caso, que será relatado a seguir, justamente porque ele demonstra um dos pontos mais difíceis e delicados de um sistema composto não só por questões como autodeclaração (a própria pessoa declara sua raça) e heteroidentificação (identificação étnico-racial de uma pessoa a partir da percepção social de outra), mas antes de tudo por uma estrutura anterior e ofertada pelo próprio racismo à brasileira. Nele, peles mais escuras são as escolhidas para os piores empregos, para a maior quantidade de balas, para a violência policial, para a solidão. Peles mais claras – aquelas que chamamos de pardas – tendem a sofrer menor processo discriminatório. Mas a questão, como tudo o que compete a esta nação, não é simples: é impossível não interseccionalizar a discussão – ou seja, levantar questões como gênero e classe social –, já que a soma de alguns fatores têm o poder de nos “clarear” ou “enegrecer” mais. Há ainda questões geográficas: alguém percebida como negra em um lugar predominante branco como o Sul do país pode parecer muito clara e mesmo branca em regiões mais negras, como a Bahia. Foi justamente essa percepção que nos trouxe até o caso de Letícia Lacerda, de 43 anos, ex-operadora de telemarketing, mãe de duas jovens acima dos 20 anos e avó de uma criança de oito. Queria muito ser médica. Em 2015, foi aprovada no Bacharelado em Saúde da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) em Teixeira de Freitas, extremo sul baiano. Saiu de São Paulo no mesmo ano para realizar o curso. Segundo ela, essa formação era obrigatória para concorrer às vagas da graduação em medicina. Letícia ingressou na UFSB como cotista na categoria L2, destinada a pretos, pardos e indígenas com renda familiar bruta per capita de até 1,5 salário mínimo. Em 2017, ela foi aprovada, em uma progressão que também usava o sistema de cotas, para o curso de medicina (através de um edital da própria universidade). Novamente, ingressou na categoria L2. Este ano, faltando seis meses para finalizar as disciplinas, teve o curso cancelado e foi expulsa. Nenhuma das cadeiras que ela cursou é, hoje, válida: caso queira ser médica, ela precisa começar do zero. A seguir, podemos ler o relato de Letícia. Depois, ouvimos Sandro Augusto Ferreira, pró-reitor de Ações Afirmativas da UFSB, e Adriana Dantas, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que analisa a questão da heteroidentificação racial e o sistema de cotas nas universidades públicas. Com a palavra, Letícia:
No período de análise e cancelamento da matrícula de Letícia, a UFSB, que reserva 75% de suas vagas para pessoas negras (incluindo pretas e pardas) e saídas de escolas públicas, lançou a cartilha “O Procedimento de Heteroidentificação“, na qual explicita os critérios seguidos pelas bancas de averiguação étnico-racial. A universidade segue, coerentemente, a questão do racismo à brasileira, que é de marca, e não de origem. Significa dizer que nosso racismo é mais explicitado contra pessoas com traços visíveis de negritude, como a pele (quanto mais escura, mais racismo), nariz alargado, lábios grossos, cabelos crespos etc. Estes traços são, na cartilha, chamados de “negroides”. Outras universidades brasileiras usam estes critérios em suas comissões de heteroidentificação, a exemplo da Unifesp e da UFRGS. Isso não significa que todos esses “marcadores” serão empregados: uma pessoa de pele muito escura pode ter cabelos lisos e nariz mais fino, por exemplo. A partir desse norte, diversas instituições têm seguido um caminho sugerido também pela ONG Educafro, que produziu uma distinção específica entre pessoas pardas: há os pardos negros, os pardos pardos e os pardos de pele clara, os pardos brancos. Os pardos negros seriam justamente aqueles com uma maior predominância dos “traços negroides” (um termo já lido como racista principalmente na sua utilização para explicar, cientificamente, no século 19, uma suposta inferioridade racial das pessoas negras). É justamente o que Oracy Nogueira chama de preconceito de marca. Pró-reitor de Ações Afirmativas da UFSB, Sandro Augusto Ferreira acompanhou todo o processo de Letícia, que teve sua matrícula cancelada ao lado de mais três estudantes da universidade, um deles declarado com vitiligo. Segundo Sandro, o fato de Letícia ter entrado em dois cursos da UF através da categoria L2 há anos atrás não interfere na decisão de cancelar a sua matrícula, hoje, do ensino público superior. “A resolução sustenta o direito de retroagir e o entendimento de que a ausência de bancas, naquele momento, não exime a possibilidade de ocupação indevida da vaga. Nossa responsabilidade é corrigir qualquer erro anterior, a qualquer momento, no papel de garantidores do direito estabelecido na Lei de Cotas”. Sandro expõe uma questão importante no debate: a influência regional das decisões. Aqui, a questão é que Letícia cresceu em São Paulo, onde pode ser percebida como negra, mas o mesmo não acontece em um lugar predominantemente negro como o Sul da Bahia. “A literatura sobre cotas ainda não deu conta disso devidamente. Mas nos firmamos na realidade baiana”. Uma contradição enfrentada pelas bancas – que terminam de certa forma tendo que assumir um enorme problema bastante anterior a todas elas, o próprio racismo de marca brasileiro – é a diferença entre o censo produzido pelo IBGE e os critérios da heteroidentificação. Segundo os números mais recentes do instituto, 45,8% da população são pardos, 8,8% pretos e 44,2% brancos. “Os números são produzidos pelo censo do IBGE, e eles usam uma metodologia que contam todos os pardos e não só os pardos negros. Mas na hora de aplicarmos a Lei de Cotas, buscamos aplicar principalmente para as pessoas pardas que são negras, já que as categorias L2 e L6 [voltadas para cotas raciais, e não sociais] são resultantes da luta de enfrentamento ao racismo. Tem uma contradição aí quanto aos números do IBGE que eu reconheço e que precisamos enfrentar. Mas a gente quer produzir reparação étnica, dado que a Lei de Cotas foi criada como instrumento de enfrentamento ao racismo. A categoria L2, deste modo, precisa ser entendida como espaço para as pessoas negras, pretas e pardas, que sofreram prejuízos históricos impostos pelo racismo”, diz Sandro, lembrando que há o sistema de cotas sociais para quem, por exemplo, é pobre, mas não é negro e nem enfrenta cotidianamente o racismo, mesmo que se entenda como pardo (o pardo de pele clara, ou “pardo branco”). Autora do estudo “A Heteroidentificação racial em vagas por cotas em universidades públicas”, a pesquisadora Adriana Dantas, da Unicamp, sublinha o enorme desafio enfrentado pelas comissões de heteroidentificação. “Elas esbarram em um dilema, um dilema político, como disse o cientista político Luiz Augusto Campos, do que é o pardo. Ele se acentua com a chegada das ações afirmativas: decidir quem é o pardo em um Brasil onde questões raciais são tão difíceis de conversar ou definir. Esse não é um problema apenas das comissões de heteroidentificação, mas um problema do Brasil. É preciso ter um cuidado com as comissões de heteroidentificação e não colocar sobre ela um peso causado pelo racismo. Ele causou essa situação, esse dilema.” Para Adriana, a cartilha da UFSB apresenta um avanço, pois demarca quem é o pardo preferencial em relação às cotas raciais. “Aqui foi definido o preconceito de marca, é o fenótipo que está em jogo. Me parece que há um movimento de tentar definir qual ‘pardo’ dava acesso às cotas, isto é, os que têm características fenotípicas mais evidentes do negro.” Acredito, pessoalmente, que um desafio não pode ser deixado de lado: a questão da interseccionalidade, ou seja, o cruzamento de fatores que dão mais ou menos poder a uma pessoa. Um exemplo: uma mulher pobre e negra enfrenta tanto machismo quanto o racismo de classe e o de raça. Três fatores hierárquicos em um só corpo. No caso de Letícia, autodeclarada parda, pesam ainda a classe social e o gênero, que a “enegrecem” mais. Que cotas, neste sentido, estas pessoas (pardas-pardas ou pardas-claras) deveriam procurar? Raciais? Sociais? Sobre a última, muito defendida por quem é contra as cotas raciais, uma pesquisa da Universidade Católica de Brasília e da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (EUA) mostrou que pessoas negras vindas de escolas públicas não são especialmente beneficiadas. No meio desse enorme desafio, restam, em uma espécie de limbo (e que me parece ainda um ponto cego), pessoas pardas com poucos traços identificados como negros, pois, país racista, atribuímos uma negritude maior ou menor a depender da largura de um nariz, por exemplo. É um lugar difícil e doloroso que Letícia, milhares de outras pessoas que buscam o sistema de cotas raciais e ainda as bancas de heteroidentificação precisarão enfrentar. |