Qual era a luta de Nise da Silveira?

Sa�de mental ainda � um tema de certa forma tabu nas camadas menos privilegiadas da sociedade. Existe um certo estigma de que depress�o �� coisa de gente rica� (ou, dado o hist�rico racista e classista do Brasil, �coisa de gente branca�). De fato, um bom tratamento psiqui�trico / psicol�gico costuma ser muito caro e pouco acess�vel, a n�o ser que a pessoa tenha paci�ncia, disposi��o ou tempo para permanecer nas intermin�veis listas de espera de boas institui��es p�blicas que lutam contra o desmonte da sa�de p�blica brasileira.

Embora a situa��o atual da sa�de mental no pa�s ainda tenha muito o que melhorar, existia uma �poca em que pacientes mentais n�o eram apenas estigmatizados pela sociedade, mas trancafiados em verdadeiras celas de hosp�cio onde os �tratamentos� inclu�am lobotomiza��es - interven��o cir�rgica cerebral na qual as vias ligando os lobos frontais ao t�lamo s�o seccionadas - para casos graves de esquizofrenia. Esta t�cnica, que rendeu ao seu criador Ant�nio Egas Moniz um Nobel de Medicina em 1949, muitas vezes tornava os pacientes irreversivelmente incapacitados.

Docilidade, passividade, e pacientes f�ceis de controlar eram os argumentos utilizados na ampla defesa da lobotomia; transformar o problema social das doen�as mentais ainda n�o t�o compreendidas em um silenciamento de seus pacientes. �Terapias� de choque tamb�m eram comuns, e o uso de viol�ncia f�sica ao imobilizar e lidar com os pacientes psiqui�tricos n�o era considerado um crime: tais pessoas encontravam-se na base de uma sociedade elitista cujos dissidentes, verdadeiramente doentes ou n�o, podiam ser calados atr�s das portas r�gidas dos grandes hosp�cios.

Mulheres sofreram duplamente com esta pol�tica encarcer�ria, sendo levadas para os hosp�cios em casos de gravidez fora do casamento, trai��o � de ambos os lados, j� que maridos podiam desfazer-se de suas �esposas-problema� ao declar�-las como loucas � e insatisfa��o com o sistema patriarcal vigente (o que hoje chamar�amos de feminismo); todos estes eram motivos para declarar a mulher como uma paciente mental, e escond�-la (e seus questionamentos) da sociedade.

Neste cen�rio cinzento de desrespeito aos direitos humanos praticado em escala global por m�dicos uniformizados e aclamados, no Brasil, uma centelha de esperan�a acendeu-se com o trabalho de uma mulher, em meados do s�culo XIX, que lutou contra o que era considerado normal e aplic�vel e pensou, � �poca, o impens�vel: que pacientes mentais eram tamb�m humanos e mereciam respeito.

Seu nome era Nise da Silveira e esta � sua hist�ria.

Nise nasceu em Macei�, no dia 15 de fevereiro de 1905. Filha de um professor de matem�tica e uma pianista, Nise demonstrou desde cedo interesse pelos estudos e, ao contr�rio de muitas conterr�neas de sua �poca, pode investir em sua educa��o, sendo admitida na Faculdade de Medicina da Bahia aos 21 anos. O come�o da sua forma��o acad�mica j� foi pontuado pelos desafios que at� hoje em maior ou menor grau perseguem mulheres: dos 158 integrantes da turma de Medicina de 1926-31, Nise era a �nica mulher. A �nica integrante do sexo feminino em uma turma gigantesca de futuros m�dicos. Uma das primeiras mulheres a se formar em Medicina no pa�s.

Se voc� acredita em destino, poderia dizer que Nise estava destinada a quebrar grandes barreiras.

Al�m de mulher e acad�mica, Nise demonstrou ser subversiva em mais um aspecto: em meio ao Estado Novo de Get�lio Vargas, a psiquiatra era comunista e inclusive militava pelo Partido Comunista Brasileiro. � esta �poca j� estava no Rio de Janeiro, trabalhando no Hospital Psiqui�trico da Praia Vermelha. Denunciada por uma enfermeira que descobriu livros marxistas sob posse de Nise, a m�dica foi presa em 1936 e levada ao pres�dio de Frei Caneca. L� ficou por cerca de 18 meses, na companhia de demais figuras ilustres incluindo Graciliano Ramos e Olga Ben�rio.

Ao sair, permaneceu afastada do servi�o p�blico at� 1944, quando foi restitu�da e come�ou a trabalhar no Centro Psiqui�trico Nacional Pedro II, tamb�m no Rio de Janeiro. E, se antes Nise j� havia se deparado com os tratamentos desrespeitosos indicados aos pacientes de transtornos mentais e demonstrado insatisfa��o com esse sistema, havia ainda um longo caminho a seguir.

As �ltimas d�cadas da psiquiatria no Brasil na �poca de Nise estavam marcadas por epis�dios terr�veis de viola��o dos direitos humanos. Um caso em particular, o Hospital Col�nia de Barbacena, em Minas Gerais, era palco de sistem�ticos silenciamentos daqueles que n�o se adequavam ao que a sociedade exigia como 'normal', ou mesmo os dissidentes pol�ticos de poderosos da �poca. Dentre seus 'pacientes', inclu�am-se v�timas de estupro, prostitutas, homossexuais, crian�as indesejadas, andarilhos, mulheres que n�o queriam se casar... Uma porcentagem grande da popula��o do Hospital era negra, evidenciando tamb�m o racismo elitista que corre fundo nas veias do pa�s. As torturas e m�ltiplos falecimentos de pacientes por frio, fome, condi��es prec�rias de sa�de, e epis�dios de corrup��o dentro do Hospital - corpos de pacientes eram vendidos para laborat�rios anat�micos de prestigiadas universidades do pa�s - rendeu ao Hospital o infame nome de "Holocausto Brasileiro", cuja hist�ria foi contada pela jornalista mineira Daniela Arbex[i] sob mesmo nome.

Se no maior hosp�cio brasileiro os mortos se acumulavam e os sobreviventes dormiam nus em c�rculos para se aquecer, nas demais institui��es psiqui�tricas do pa�s a situa��o tamb�m demonstrava-se terrivelmente prec�ria. Nise criticava os m�todos tradicionais nas enfermarias de onde trabalhava, e chegou a se recusar a aplicar eletrochoques nos pacientes que 'n�o se comportavam'. Certamente encarada como uma mulher sens�vel demais, Nise foi transferida para o setor de terapia ocupacional, cuja import�ncia era menosprezada pelos m�dicos da �poca.

Por serem muitas vezes rejeitados pela fam�lia, desprezados pela sociedade e considerados incapaz para a vida p�blica, os pacientes psiqui�tricos eram convocados a realizar tarefas b�sicas de limpeza e manuten��o, trabalho bra�al gratuito que era explorado pelo sistema manicomial da �poca sob pretexto de �auxiliar� os pacientes ao retorno � realidade. Mas Nise n�o concordava com isso. O uso de trabalho escravo � mais uma clara viola��o dos direitos humanos e a m�dica, transgressora para a �poca, enxergava os terr�veis problemas com os m�todos adotados pela psiquiatria no trato aos pacientes.

Nise decidiu que tomaria uma abordagem diferente, e revolucion�ria: trataria os pacientes como seres humanos, cujo comportamento poderia ser diferente do esperado, mas ainda pass�vel de ser compreendido. Ao explorar o uso da pintura e de demais artes visuais, Nise conseguiu possibilitar aos pacientes uma maneira de reatar la�os com a realidade ao permitir que estes explorassem sua criatividade. Ao inv�s de duchas de alta press�o e choques el�tricos, os pacientes eram transportados a uma realidade de compreens�o e, porque n�o, afeto.

Alguns pacientes, como Carlos Pertuis, revelaram-se ser artistas de primeira m�o, e em 1952 Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, para preservar e estudar os trabalhos produzidos nos est�dios de terapia ocupacional. Estes trabalhos apontariam no futuro pesquisas interessantes para dentro da maneira de pensar dos esquizofr�nicos.

Nise tamb�m foi revolucion�ria ao adotar o contato com animais, hoje conhecidamente boas companhias na terapia de diversos transtornos mentais, para estimular senso de responsabilidade em seus pacientes. Nise costumava chamar os c�es e gatos que animavam a vida de seus pacientes de co-terapeutas e no final de sua vida p�de expor seu processo na obra �Gatos, A Emo��o de Lidar�[ii].

N�o apenas envolvida com seu trabalho human�stico com os pacientes do hospital, Nise tamb�m foi uma autora produtiva durante sua vida, publicando obras a respeito do trabalho do renomado psicanalista Carl Jung e alguns livros a respeito do seu trabalho com a psiquiatria, em defesa da express�o criativa de seus pacientes e a explora��o dos s�mbolos pintados nos estudos psiqui�tricos. Algumas obras de seus pacientes foram expostas no segundo Congresso Internacional de Psiquiatria, realizado em 1957 em Zurique, Su��a. O pr�prio Jung interessou-se grandemente pelo trabalho de Nise e a convidou a estudar em seu Instituto no final da d�cada de 50.

Em 1999, aos 94 anos, conhecida pelo jeito af�vel por�m decisivo, os �culos redondos no rosto envelhecido, Nise da Silveira faleceu ap�s ser acometida por uma pneumonia. O Brasil perdia seu maior exponente da luta antimanicomial, por�m Nise abriu caminho e foi precedida por mais m�dicos, enfermeiros, psic�logos e outros interessados em um tratamento humanizado de seus pacientes. A ci�ncia da psiquiatria s� teve a ganhar com as t�cnicas de Nise, adotando respeito e considera��o no tratamento de doentes mentais.

Fazem quase vinte anos da morte de Nise. Ainda temos um longo caminho na luta contra os preconceitos, estigmas e precariedades que acometem pessoas que possuem transtornos psiqui�tricos. Mas se hoje podemos perceber as atrocidades cometidas contra os pacientes de hosp�cios e clamar por um sistema que integre os pacientes de volta � sociedade ao contr�rio de trancafi�-los em condi��es subhumanas, temos de nos voltar para a hist�ria de Nise. Uma psiquiatra forte, que atravessou muitos obst�culos durante sua vida por ser exatamente isto: mulher, respeitosa e decidida. Um exemplo claro de que precisamos de mais mulheres levantando a voz, fazendo, divulgando e produzindo ci�ncia. Em uma sociedade doente por normalidade, por mais Nises e loucos no mundo.



* Mestranda em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2018 � at� o presente). Gradua��o em Ci�ncias Biol�gicas � Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2012 � 2017).

Qual foi a luta de Nise da Silveira?

Resumo sobre Nise da Silveira Ela criticava tratamentos violentos como o eletrochoque e a insulinoterapia. Introduziu, em nosso país, tratamentos que colocavam os pacientes em contato com expressões artísticas e animais domésticos. Foi presa na década de 1930 por envolvimento com organizações de esquerda, como o PCB.

Qual foi a principal luta enfrentada pela psiquiatra Nise da Silveira?

O filme relata a luta enfrentada pela psiquiatra Nise da Silveira, a qual se recusava a utilizar as técnicas da lobotomia e do eletrochoque em pacientes considerados perigosos e com quadros psiquiátricos compreendidos como crônicos e irreversíveis.

O que Nise da Silveira defendia?

A psiquiatra defendia o uso da arte para a manutenção da saúde mental, especialmente modelagem e pintura. Além disso, Nise incentivava os pacientes – que ela preferia chamar pelo nome próprio ou por clientes – a manter contato e cuidar de cães e gatos.

Qual era o modelo de tratamento defendido por Nise?

Além da arte, o contato com cães e gatos também foi um dos tratamentos introduzidos por Silveira no Brasil. Os pacientes podiam cuidar dos animais que estavam nos espaços abertos do centro, estabelecendo vínculos afetivos. A psiquiatra escreveu um livro dedicado aos felinos, chamado Gatos, a Emoção de Lidar.