Quem é o pai da mulher do bolsonaro

"A nova dupla sertaneja, Cheque & Mate", lia-se no meme mais partilhado do Brasil na semana passada: na foto, as amigas Flordelis, a pastora evangélica acusada de matar o marido, e Michelle Bolsonaro, a primeira-dama do país, destinatária de 25 cheques de Fabrício Queiroz, o pivô de uma organização criminosa que implica o seu enteado mais velho, o senador Flávio Bolsonaro.

Não foi o único constrangimento pelo qual Michelle, 40 anos, dos quais 13 casada com Jair Bolsonaro, passou nos últimos tempos: o perfil Anonymous Brasil, filial brasileira do grupo internacional de hackers, expôs moradas, e-mails e telefones seus na internet na quarta-feira, 26.

Duas semanas antes, na sequência da morte da sua avó, vítima de covid-19, Michelle foi atacada nas redes sociais por um primo direito. "Obrigado por você não ter feito absolutamente nada por nossa avó. Tanto poder, tanta influência e, por vergonha (sim, vergonha!), não ajudou seu próprio sangue", escreveu Eduardo Castro.

Depois, o jovem, que é chamado influenciador digital, ainda tornou pública a resposta privada de Michelle pela rede social Instagram: "Vou-te processar por essa publicação. Acho melhor você rever sua postura em relação a esta publicação. Deixa de ser cretino. Você não é o rico da internet? Cuidado com as suas publicações, seu moleque. Você nem gostava da "vó, seu falso. Seu merda! Cuidado", escreveu ela.

Como se não bastasse, na altura a primeira-dama cumpria ainda quarentena por ter contraído covid-19, doença da qual está recuperada.

Desde que Bolsonaro foi eleito, em outubro de 2018, e tomou posse, em janeiro de 2019, nunca a primeira-dama passara por uma fase tão delicada - chamaram-lhe "inferno astral" na imprensa. Mas Michelle de Paula (ela prefere ser chamada pelos dois nomes próprios) Firmo Reinaldo Bolsonaro está habituada a "infernos": nasceu em Ceilândia, cidade contígua a Brasília, e apelidada de "sucursal do inferno".

A colossal desigualdade do Brasil tem nas diferenças entre o Plano Piloto, região de Brasília em que se situa o Palácio do Alvorada, residência oficial do presidente, e Ceilândia, cujo nome deriva de CEI (Campanha de Erradicação de Invasões) e nasceu como uma espécie de reunião de favelas, um dos seus exemplos mais crus.

Crescer num "barraco improvisado"

Michelle cresceu "num barraco improvisado", conforme definiu a tia Ângela Maria em reportagem do Correio Braziliense, na Ceilândia Norte, perto da Sol Nascente, desde 2013 considerada a maior favela da América Latina, à frente da Rocinha, no Rio de Janeiro, e onde ainda mora parte da sua família.

Filha de Vicente de Paulo Reinaldo, motorista de autocarro reformado, natural de Crateús, no Ceará, e de Maria da Graça Firmo Ferreira, natural de Presidente Olegário, em Minas Gerais, ambos, portanto, candangos, o termo usado para definir os migrantes que buscam melhorar de vida na capital federal do Brasil, a hoje primeira-dama cresceu com os pais separados. Tem três meios-irmãos do lado da mãe, Suyane Lanuze, Geovanna Kathleen e Yuri Daniel, e um do lado do pai, Diego.

O pai, com quem mantém relação próxima, é conhecido por Paulo Negão, conforme revelou Jair Bolsonaro, ao usá-lo como prova viva de que não é racista nem preconceituoso em relação aos nordestinos, após uma declaração controversa nesse sentido.

A mãe, Maria das Graças, é uma das quatro familiares próximas de Michelle com problemas com as autoridades: falsificou a identidade, por duas vezes, trocando a data de nascimento - numa surgia nove anos mais nova e noutra 11 - e, num dos casos, até o nome, apresentando-se como Mirele. Confessou as fraudes à polícia mas jamais cumpriu pena.

Também não foi punida pela agressão - golpes com uma pedra na cabeça da vítima - ao seu senhorio, Ribamar dos Santos, que, de acordo com ela, tentara violá-la.

A sua mãe, a avó de Michelle cuja morte neste mês por coronavírus provocou o choque público da primeira-dama com o primo direito, pelo contrário, chegou a cumprir dois anos de cadeia: Maria Aparecida esteve confinada em Colmeia, penitenciária feminina de Brasília, por tráfico de drogas depois de, em 1997, já avó, ter sido apanhada com entorpecentes. Ela disse que pertenciam a um vizinho mas não convenceu a polícia e foi detida, tinha a primeira-dama 16 anos.

Dois tios maternos da primeira-dama do Brasil também enfrentam problemas com a polícia. Um dos irmãos da sua mãe, João Batista, está preso preventivamente no Batalhão da Polícia Militar da Papuda por envolvimento com a milícia. Segundo o jornal Metrópoles, com sede em Brasília, ele assumiu o controlo da organização criminosa no lugar do líder, entretanto detido por duplo homicídio.

O outro, Gilmar, foi condenado em 2018 a 14 anos de prisão pela violação de duas sobrinhas menores que, de tanto terem sido vítimas de abusos, nem conseguiram quantificar as violações às autoridades. Está foragido e é considerado perigoso.

O avô de Michelle - pai da sua mãe, dos seus dois tios com problemas com a justiça e marido da recém-falecida Maria Aparecida - morreu assassinado de forma brutal por duas toxicodependentes em 2014, num caso encerrado pela polícia como latrocínio, roubo seguido de morte. Trabalhava como gari, o termo brasileiro para varredor de rua.

O sonho de Brasília

Criada num ambiente de pobreza e de violência, a hoje mulher de Jair Bolsonaro sonhava com uma vida na vizinha Brasília, cidade de maior rendimento per capita do Brasil, como tantas outras jovens de Ceilândia. Concluído o ensino médio, trabalhou no ramo da produção de eventos, fazendo demonstrações de alimentos e de vinhos em supermercados, e como modelo, carreira que abandonaria a conselho de uma missionária na igreja evangélica que passou a frequentar por essa altura.

O emprego seguinte já foi no coração da Praça dos Três Poderes: secretária na Câmara dos Deputados do grupo parlamentar do Partido Progressista, a força política mais envolvida no escândalo do Petrolão, o principal objeto da investigação da Operação Lava-Jato. Assessorou, primeiro, o deputado Vanderlei Assis, um dos visados num caso conhecido como Máfia das Ambulâncias, de desvio de dinheiro público para aquisição daquele tipo de viaturas, e, a partir de 2006, o então meio anónimo Jair Bolsonaro.

A 28 de novembro de 2007, Jair e Michelle casaram-se pelo civil e dessa união nasceu em 2010 Laura, a segunda filha dela, que já tinha Letícia Marianna de outra relação, e quinta dele, pai de quatro filhos - Flávio, Carlos, Eduardo e Jair Renan - de dois casamentos anteriores. Bolsonaro desfez uma vasectomia para cumprir o desejo de Michelle de ser mãe novamente.

Os dois casaram-se segunda vez em 2013, na noite de 21 para 22 de março - ele nasceu num 21 de março, de 1955, e ela num 22 de março, de 1980 -, em cerimónia para 150 convidados presidida pelo pastor evangélico Silas Malafaia, controverso líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

Já morando no luxuoso Vivendas da Barra, no exclusivo bairro Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, o mesmo que foi notícia por ser morada do autor material da execução da vereadora Marielle Franco em 2018, Michelle passou a frequentar outra denominação evangélica, a Igreja Batista Atitude, onde promove ações sociais.

A candidatura do deputado e capitão reformado às eleições de 2018 não afetou, até quase ao fim da atribulada campanha eleitoral, a sua tradicional discrição. Só interveio a três dias da segunda volta, quando Bolsonaro derrotou Fernando Haddad, do PT, classificando o marido como "um ser humano maravilhoso" e "brincalhão".

Na posse de Bolsonaro, entretanto, tornou-se notada nacional e internacionalmente, ao ser a primeira primeira-dama da história a discursar. Fê-lo em LIBRAS, a linguagem brasileira de sinais: um outro tio, Gilberto, surdo de nascença, serviu-lhe de inspiração para o estudo daquela forma de comunicação ainda na juventude.

No Planalto, sublinhou a sua dedicação a causas sociais no âmbito do Ministério da Cidadania - o que gerou um boato, iniciado numa coluna de bastidores da revista IstoÉ, de que teria um caso extraconjugal com o ministro da pasta, Osmar Terra, razão pela qual Bolsonaro o exonerara. O rumor foi desmentido com veemência pelo próprio Terra.

O consulado de primeira-dama decorreria sem mais sobressaltos não fosse a revelação de que Fabrício Queiroz, o operacional de um milionário esquema de corrupção envolvendo o desvio de salários de assessores fantasma de Flávio Bolsonaro, transferira 21 vezes dinheiro para a sua conta. E a mulher dele, Márcia Aguiar, mais quatro vezes, num total de 25 depósitos.

O esquema, que envolve familiares do próprio Queiroz, e parentes de Adriano da Nóbrega, líder da milícia Escritório do Crime morto em confronto com a polícia no início deste ano, terá servido, diz o Ministério Público, para engordar os rendimentos privados do clã Bolsonaro e até para aquisição de imóveis em dinheiro vivo.

Os investigadores apuraram ainda que uma loja de chocolates de que Flávio é sócio serviu para lavagem de dinheiro. Desde então, Michelle passou a ser alcunhada no submundo da internet como "Micheque".

Hoje está no olho de um furacão alimentado pela recusa do marido em explicar-se. "Tenho vontade de encher a tua boca de porrada", disse o presidente, na segunda-feira, dia 24, ao ser confrontado com a pergunta "por que sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil reais de Fabrício Queiroz?".

A pergunta, que deixou Bolsonaro à beira de um ataque de nervos, foi efetuada na sequência de já ter sido feita mais de um milhão de vezes na internet. Na quinta-feira, 27, foi colocado mesmo um cartaz com a explosiva questão em frente ao Palácio do Planalto.

Michelle, o sujeito da pergunta, está a descobrir por experiência própria que morar num palácio luxuoso na zona mais rica de Brasília e do país pode ser, afinal, tão infernal como viver entre a miséria e os perigos de Ceilândia.